quarta-feira, 15 de setembro de 2021

‘COMPROMETIDA’ E SEM LICENÇA

 


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anilo Novaes, de 42 anos, acredita que um e-mail que enviou ao Canadá colocou sua vida em risco.

As mensagens foram encaminhadas para a multinacional canadense Brookfield, um fundo de investimentos bilionário com sede em Toronto e que possui negócios nos setores energético e imobiliário na América do Norte, América do Sul, Europa e Ásia – e na região da pequena Laranjal, em Minas Gerais, cidade em que Novaes vive com a família.

Novaes, que vivia da retirada e comércio de areia do rio que até então existia na região, usou o Google tradutor para se fazer compreender. No assunto das mensagens, “help Brasil”.

O ex-areeiro se apresentou como um dos atingidos após a formação do lago da Usina Hidrelétrica Barra do Braúna, da Brookfield, construída no Rio Pomba, e que entrou em funcionamento em 2011.

As mensagens foram enviadas em 2017, seis anos depois, portanto, da inauguração da hidrelétrica. O areeiro já havia feito uma série de outros contatos com representantes da empresa no Rio, sem sucesso. Ele reclamava que acordos para a reativação econômica dos atingidos pela barragem não estavam sendo cumpridos.

Reativação econômica é como são definidos os projetos a serem elaborados para compensar a perda de renda de quem é afetado por uma obra de grande porte, como uma usina hidrelétrica. No caso de Laranjal, cidade de Novaes, foram prejudicadas pessoas que trabalhavam, por exemplo, com o comércio de areia, pescadores e agricultores. A associação local de moradores estima que mais de 200 famílias tenham sido afetadas pelo empreendimento.


Os acordos com os atingidos eram intermediados pelo Núcleo de Assessoria às Comunidades Atingidas por Barragens, o Nacab, entidade contratada pela Brookfield, e pelo Conselho Estadual de Assistência Social de Minas, o Ceas-MG.


Como a situação não se resolvia, Novaes decidiu comunicar o comando mundial da empresa, na esperança de que, por lá, alguém tomasse alguma atitude.


Em maio, um mês depois de ter enviado o e-mail, ele relatou ter recebido uma ligação de representantes brasileiros da Brookfield, que teriam dito que suas reclamações os estariam prejudicando. No telefonema, que a empresa nega ter feito, ele diz que entre ouviu uma conversa em que teriam dito que colocariam “os homens [policiais] em cima dele”. Novaes entendeu aquilo como uma ameaça.


E-mail enviado por Novaes à multinacional.

No mês seguinte, no dia 8, um homem ficou dois dias parado na frente de sua casa. “No segundo dia, quando a minha esposa foi à padaria, as pessoas já estavam com medo e comentando sobre a presença daquele homem. Ele disse que iria a um velório, mas como a cidade é pequena, nós sabíamos que não haveria velório nenhum. Ela disse: ‘Danilo, está acontecendo alguma coisa ali na rua. Eu fui à padaria e está todo mundo cagando de medo. Tem um cara aqui na rua, parece que vai matar alguém. Está fazendo tocaia'”, como nos contou quando o encontramos em Laranjal.


Com medo de que o desconhecido tivesse qualquer conexão com a ligação que disse ter recebido da empresa, Novaes acionou a Polícia Militar, que foi até o local e abordou o homem, que se identificou como Emerson. Ele disse às autoridades que trabalhava para a “Usina Hidrelétrica Brascan”, mas não deu detalhes do que fazia na cidade. Brascan, originado a partir dos nomes dos dois países, Brasil e Canadá, é um antigo nome da Brookfield no Brasil. Todas essas informações constam no boletim de ocorrência registrado em 8 de junho de 2017. Emerson foi liberado pelos policiais.

No ano seguinte, em novembro, Novaes se disse vítima de outro episódio de tocaia. Mais uma vez, ele registrou uma ocorrência na polícia depois de um homem ter estacionado um carro na frente de sua casa e tirado fotos do imóvel, um dia antes de ele participar de uma reunião para reclamar da Brookfield no Conselho de Assistência Social de Minas Gerais. “Um vizinho bateu na minha porta e disse: ‘Danilo, o que você tá arrumando? Um Corolla preto te vigiou hoje o dia inteiro. O homem tirou foto da sua casa, vigiou você o dia inteiro'”.

O homem que Novaes acredita que o estava seguindo disse à polícia que trabalhava para a “Usina Hidrelétrica Brascan”, antigo nome da Brookfield no Brasil.

Desta vez, Novaes não foi o único a sentir que estava sendo seguido: Juanice Oliveira, de 37 anos, representante da Associação dos Atingidos Pela Usina Hidrelétrica de Barra do Braúna, a AABB, também disse à polícia ter sido abordada por pessoas que estariam em um carro do mesmo modelo descrito pelo ex-areeiro. Um dos homens teria entrado em seu restaurante, tirado fotos dela e perguntado qual era seu nome, de acordo com registros de seu depoimento à polícia a que tivemos acesso.

O primeiro delegado que atendeu o caso viu elementos suficientes para investigar um possível crime de ameaça e decidiu instaurar um inquérito policial, aberto em 9 de janeiro de 2019 e que segue em apuração. Apenas um ex-funcionário da Brookfield, que atuou como analista ambiental entre 2014 e 2016, foi ouvido. Ele afirmou, no depoimento, que a empresa não estaria cumprindo as determinações de auxiliar na reestruturação do trabalho dos moradores atingidos pela usina hidrelétrica. Desde então, nenhum outro funcionário da multinacional foi chamado para depor. Já Novaes segue com medo da próxima tocaia.

Há indícios de responsabilidade da Brookfield em uma enchente que destruiu parte da cidade de Raul Soares, a cerca de 140 km de Laranjal. Foto: Leonardo Augusto
Muitos bilhões e pouca investigação
Só nos últimos cinco anos, entre 2016 e 2020, os ativos da Brookfield no Brasil mais do que dobraram de valor, passando de R$ 43,3 bilhões para R$ 121,3 bilhões. A empresa diz que um de seus segredos é “manter boas relações nas comunidades em que atua, mitigar o impacto de suas operações sobre o meio ambiente e realizar negócios segundo os mais elevados padrões éticos e legais”, conforme descrito pelo CEO brasileiro, Henrique Carsalade Martins, em um relatório sobre a atuação da multinacional no país.

As possíveis ameaças contra Novaes e Oliveira parecem ser apenas uma das facetas das “boas relações” praticadas longe da matriz canadense. Além das investigações, uma outra usina da empresa em Minas Gerais, na cidade de Raul Soares, a cerca de 140 km de Laranjal, atua desde 2008 sem licença ambiental. Também encontramos indícios de responsabilidade da empresa em uma enchente que destruiu parte de Raul Soares. Nenhum desses casos é mencionado especificamente nos relatórios anuais da empresa, no Brasil ou no exterior, embora o grupo admita que é alvo, de tempos em tempos, de investigações e inquéritos que podem causar dano à sua reputação e relate dificuldades para detectar estes problemas.

Brookfield Overview Brasil 2020/2021No relatório sobre a atuação da multinacional no país, o CEO Henrique Carsalade Martins faz questão de ressaltar as supostas boas relações da empresa com a comunidade.
Fundada há 122 anos, a canadense é uma gestora de ativos com presença em 30 países dos cinco continentes, com ações negociadas em bolsas de valores e sede em Toronto. No Brasil, a Brookfield afirma possuir ativos distribuídos em 20 estados. Na prática, a empresa administra seus bilhões pelo mundo tendo a propriedade de um escopo amplo de negócios, que passa por energia renovável (como hidrelétricas), prédios e centros comerciais, operadoras de seguros e empreendimentos de infra-estrutura e logística. Além das hidrelétricas brasileiras, a Brookfield é sócia da VLI, por exemplo, empresa de logística que opera uma vasta rede de ferrovias e portos. Essa pulverização de negócios torna ainda mais difícil a responsabilização e sensibilização de gestoras de ativos como a Brookfield, já que há uma complexa rede de empresas entre o empreendimento em si e a cúpula da empresa.

O delegado Fábio Correia, que investiga as supostas ameaças contra Novaes e Oliveira, nos disse que enviou os pedidos para ouvir os representantes da empresa, que não moram na área de jurisdição da delegacia, mas que ainda não houve nenhum retorno.

“Esse rapaz [o único ex-funcionário da Brookfield ouvido pela polícia] se prontificou a vir aqui e prestou bastante detalhes a respeito de como era a dinâmica dessa empresa com a comunidade, corroborando a declaração da vítima [Novaes], no sentido de que possivelmente os autores [da suposta ameaça] teriam total ligação com essa empresa. Precisamos ouvir o outro lado da história. É aí que a investigação dá uma travada, porque os representantes dessa empresa não são de Belo Horizonte”, nos disse o delegado.

“A gente não pediu nada disso. A gente não pediu para vir represa, para vir fazer esse transtorno na vida da gente”
Tentamos entender por que nenhum representante da empresa foi ouvido desde 2019, mas a Polícia Civil de Minas Gerais não deu explicações. Em nota, o órgão respondeu que o caso está em sigilo e que “as informações serão repassadas em momento oportuno”.

Na versão da multinacional apresentada à nossa equipe e à justiça, foi Novaes quem teria ameaçado à empresa ao dizer, em um e-mail, que faria um protesto em grupo em frente à sede da Brookfield, no Rio de Janeiro – que aconteceu de fato em julho de 2018 –, e também por enviar uma série de mensagens a executivos do grupo, no Brasil e no Canadá, em que cobrou pagamentos e apoio para resolver os problemas que ele diz terem sido criados pela hidrelétrica em Laranjal. À justiça, eles destacam uma mensagem em que o ex-areeiro afirmou que “entre a morte e ficar no prejuízo eu prefiro a morte”. Novaes disse que a mensagem se referia às supostas perseguições da empresa contra ele, como a tocaia e os telefonemas que diz ter recebido.

A multinacional diz ainda ter reforçado a segurança de sua sede e de seus funcionários a fim de “observar a real intenção dele materializar as ameaças”, mas não respondeu se realmente contratou ou não pessoas para vigiar Novaes e Oliveira, conforme registrado nos boletins de ocorrência a que tivemos acesso, nem o significado exato dessa afirmação. Também não disse se registrou as supostas ameaças de Novaes à polícia. À justiça, o grupo afirmou apenas que a Polícia Militar foi acionada no dia do protesto “para evitar impactos no tráfego da região”.

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