SE VOCÊ ACESSAR esse link do site O Globo agora, vai dar de cara com um aviso de “página não encontrada”. Ali estava a reportagem intitulada “Em campanha por nomeação de Bolsonaro, chefão do Cade contrata filho de ministro do STF como estagiário”. O texto foi publicado em 17 de junho e excluído cerca de uma hora depois, sem qualquer explicação. Apesar disso, a internet não esquece. A reportagem segue viva na rede, copiada na plataforma Outline e no site Yahoo. Até alguns dias atrás, a manchete continuava ativa também na busca do Google.
O “chefão” do Cade – o Conselho Administrativo de Defesa Econômica, que regula a concorrência entre empresas no Brasil – mencionado na reportagem é o superintendente-geral do órgão, Alexandre Cordeiro Macedo. O ministro do STF em questão é Kassio Nunes Marques. A reportagem contava que o filho de Marques foi favorecido por Cordeiro em uma seleção de estágio no Cade e contratado no dia 29 de setembro de 2020, um dia antes de o ministro ser indicado por Bolsonaro ao cargo no Supremo Tribunal Federal. À época, o jovem Kevin de Carvalho Marques ainda estava no terceiro semestre do curso de direito no Centro Universitário IESB, em Brasília. “A primeira disciplina de Direito Econômico, considerada importante base para qualquer estagiário do Cade, é prevista apenas para o sexto semestre do curso”, dizia a reportagem.
O texto também contava que a Superintendência-Geral “abriu processo seletivo para contratação de um único estagiário no dia 23 de setembro de 2020, e deu aos interessados o prazo de apenas dois dias para as inscrições”. Além do tempo apertado, a vaga só foi anunciada no sistema interno do Cade e, por isso, apenas servidores do órgão poderiam ficar sabendo que ela existia. O filho do ministro, informava a reportagem, foi escolhido somente pela análise curricular e por uma entrevista. Diferentemente dos outros estagiários do órgão, ele não fez nenhuma prova. O processo seletivo geralmente exige que os candidatos escrevam duas dissertações sobre temas diferentes, como mostra uma troca de e-mails internos a que eu tive acesso, relacionados a uma seleção de estágio de 2019. E as vagas costumam ser anunciadas publicamente, inclusive nas universidades.
Era a segunda reportagem seguida do Globo sobre Cordeiro. A primeira, publicada no dia anterior, 16, segue online, e trata das brigas políticas na troca de comando do órgão. Segundo uma das pessoas com quem falei, ligada ao Cade, o jornal estava investigando o conselho e tinha pelo menos mais uma reportagem para ser publicada. No entanto, depois que o texto sobre o estágio para o filho do ministro Nunes Marques foi excluído, isso não aconteceu.
O mandato de Cordeiro acaba em outubro, e ele pretende permanecer no Cade, como presidente do órgão. Mas isso depende da indicação de Bolsonaro. Agradar o ministro queridinho do presidente, sugeria o texto excluído, seria uma forma de conseguir um forte aliado para garantir seu desejo. Ele conseguiu: Cordeiro foi indicado para o cargo no dia 30 de junho, mas sua nomeação ainda dependia de uma sabatina no Senado, ocorrida em 5 de julho. Ele foi aprovado e será o próximo presidente do Cade.
Excluir matérias depois de publicadas é um expediente pouco comum no jornalismo. Se existe alguma informação errada, os veículos normalmente corrigem os dados e avisam os leitores que mudanças foram feitas na reportagem. Questionei a assessoria de imprensa do grupo Globo sobre a decisão, e o conglomerado informou que não iria comentar o caso. A assessoria do Cade também não respondeu às minhas perguntas e, a do STF, disse que não foi o ministro Nunes Marques quem pediu a exclusão da reportagem do site – mas eu continuei atrás de uma resposta.
Nos últimos dias, fontes ligadas ao Cade me alertaram que o grupo Globo tem motivos para não desagradar a cúpula do conselho. Os informantes, que não querem ser identificados para evitar perseguições por parte de Cordeiro, disseram que ele tem mostrado especial interesse no conglomerado de mídia, um dos principais alvos da ira de Bolsonaro. Documentos públicos e informações acessíveis no próprio sistema do Cade e no Diário Oficial da União confirmam tudo que ouvi.
A serviço do Bolsonaro
Desde 2019, ao menos três processos foram iniciados no Cade contra a Globo Comunicação e Participações S.A. por supostas condutas anticompetitivas. Em todos eles, Cordeiro se envolveu diretamente e de forma incomum no andamento da investigação. Foi o gabinete do superintendente-geral que produziu documentos decisivos – e não as coordenações-gerais, que normalmente são as responsáveis por apurar as denúncias, elaborar e assinar as notas técnicas. Nos casos que envolvem o grupo Globo, contudo, a assinatura de Cordeiro aparece até nessas notas.
O gabinete do superintendente-geral produziu apenas sete notas técnicas desde 2019, sendo duas referentes a demandas administrativas. Das cinco que dizem respeito a investigações, quatro são relacionadas ao grupo Globo, e nenhuma delas é favorável. A quinta nota técnica refere-se a uma investigação contra a Gol Linhas Aéreas, denunciada pela Azul por conduta anticoncorrencial. Todos esses dados estão no sistema de busca processual do Cade. Nele, é possível filtrar quais documentos do tipo nota técnica foram gerados pelo gabinete do superintendente-geral e a qual processo cada uma delas se refere.
Não é ilegal que o gabinete do superintendente-geral crie notas técnicas, mas curiosamente isso não aconteceu nos outros cerca de 160 processos de conduta anticompetitiva que, de acordo com os relatórios de gestão do Cade, também foram iniciados em 2019 e 2020. É possível saber isso, porque, no sistema de busca do Cade, não aparece nenhum documento relacionado a outro processo iniciado nesses anos, exceto os que envolvem a empresa da família Marinho e o caso da Gol. Perguntei sobre tudo isso para o Cade, inclusive mostrando o print que indica quais filtros usei no sistema de busca processual e quais resultados apareceram para mim, mas a assessoria de imprensa do órgão não se manifestou sobre o aparente interesse do superintendente-geral em casos específicos.
Outra informação relevante que consegui foi por meio de uma busca avançada no Diário Oficial da União e que mostrou que, este ano, até o dia 22 de junho, Cordeiro só assinou um despacho, e ele se refere exatamente a um dos processos do conglomerado de comunicação inimigo de Bolsonaro. Além da aparente seletividade, a improdutividade em 2021 também é marcante: para efeitos de comparação, no mesmo período, os dois superintendentes-adjuntos assinaram, juntos, cerca de 150 despachos. Cordeiro não se licenciou do cargo e deveria estar trabalhando normalmente. Também mostrei para a assessoria do Cade o resultado dessa pesquisa que fiz no Diário Oficial da União, mas o órgão respondeu apenas que “as manifestações são realizadas somente por meio de pareceres, notas técnicas, estudos ou decisões nos autos”.
O Cade é o conselho do governo federal responsável por investigar empresas e impedir que elas usem práticas anticompetitivas que atrapalhem a livre concorrência, como combinar preços e formar cartéis. O órgão também analisa processos de fusão de grandes empresas, aprovando ou não os chamados atos de concentração.
O primeiro dos três processos que estão em andamento contra o grupo Globo é de setembro de 2019. Ele investiga se a emissora de TV tem o monopólio de transmissão de direitos de futebol no mercado nacional.
O segundo começou em fevereiro de 2020 e trata do pagamento de “bonificação por volume” para as agências de publicidade, conhecido no meio como BV. Desde a década de 1960, a empresa tem esse plano de incentivo para conquistar anunciantes – quanto mais publicidade uma agência destinar ao veículo durante um determinado tempo, maior será o BV recebido.
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