SEIS DIAS APÓS fechar contrato para comprar 10 milhões de doses da Sputnik V a um preço 20% maior por unidade que o pago por governos estaduais que também compraram a vacina, o Ministério da Saúde registrou em documento pressa para comprar outras 100 milhões de doses do imunizante. Mais uma vez, o negócio seria mediado pela União Química, farmacêutica ligada a políticos do Centrão.
A intenção de compra – com opção de adquirir um novo lote do mesmo tamanho no futuro – está documentada em ofício do dia de 18 março assinado pelo ex-secretário-executivo do Ministério da Saúde, o coronel do Exército Élcio Franco, e enviado ao Fundo Russo de Investimentos Diretos, ou RDIF, na sigla em inglês. O ofício está entre o material encaminhado à CPI da Covid no Senado.
Esse e outros documentos analisados pelo Intercept, inclusive a troca de e-mails do então ministro da Saúde, o general da ativa do Exército Eduardo Pazuello, também revelam encontros secretos ou precariamente registrados com Rogério Rosso, diretor de negócios internacionais da União Química e ex-deputado pelo PSD.
“Em seguimento à videoconferência que mantivemos no último 11 de março, gostaria de reiterar o interesse do Ministério da Saúde brasileiro na aquisição de 100 milhões de doses da vacina Sputnik V, com opção de compra de mais 100 milhões de doses, em cronograma de entrega a ser combinado no mais curto prazo possível”, diz o documento.
No ofício, Franco, homem de confiança de Pazuello, pediu a confirmação dos russos “sobre o status do relacionamento com a União Química Farmacêutica Nacional S/A, que por ora segue sendo a representante oficial do RDIF no Brasil”. À época, sequer havia autorização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, a Anvisa, para que a Sputnik V fosse importada e usada no Brasil. O imunizante só teve aval da agência, com restrições, três meses depois, em junho.
A União Química levantou suspeitas dos senadores da CPI da Covid após reportagem do Intercept que revelou que a Sputik V comprada do laboratório ligado ao Centrão custou 20% mais caro do que a vendida diretamente pelo fundo russo. O contrato também está sob análise do Tribunal de Contas da União. A farmacêutica nega irregularidades.
Autorizados pela legislação brasileira, 17 estados compraram sem intermediários a vacina diretamente do Fundo de Investimentos Diretos da Rússia, que vende a vacina Sputnik V desenvolvida pelo Instituto Gamaleya. O preço por dose pago pelos governadores é dois dólares mais barato do que pelo ministério para a União Química.
Nesta quarta-feira, 21 de julho, o atual ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, disse que o governo federal deve cancelar a compra das 10 milhões de doses de Sputnik V com sobrepreço da União Química, denunciada pelo Intercept.
A mentira de Pazuello
As quebras de sigilo e documentos enviados à CPI mostram que as tratativas entre o governo Bolsonaro e a União Química foram feitas às escondidas e que Pazuello mentiu à CPI quando disse que nunca recebeu “diretoria de ninguém para tratar de compra e venda de vacina”.
A conta de e-mail pazuello@saude.gov.br , entregue ao Intercept por uma fonte, revela uma reunião, às 17h de 15 de outubro de 2020, cuja pauta era a “vacina russa”. O encontro teve participação da cúpula da pasta, assessores e secretários. Mas, na agenda oficial de Pazuello, consta apenas um encontro com o “ex-deputado Rosso”, que estava ali como diretor da União Química. Nenhum outro participante da reunião é listado na agenda pública do então ministro, o que revela, no mínimo, pouco caso com a transparência da negociação por vacinas.
À CPI, a ex-coordenadora do Programa Nacional da Imunização, Francieli Fantinato, também listada entre os participantes, disse que a única vez que esteve em reunião com políticos para falar de vacinas foi quando tratou com a União Química. Em seu depoimento, Fantinato disse não se lembrar do nome do deputado presente na reunião, e a CPI não se aprofundou em detalhes do encontro.
Élcio Franco também se reuniu com a União Química. A agenda oficial dele registra ao menos dois dos encontros, em 21 de dezembro de 2020, com a participação de Rosso, e 11 de março de 2021, com executivos do fundo russo. Mas omite uma terceira reunião, ocorrida em janeiro e citada num outro ofício.
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