NO BRASIL, é comum batizar como “invisíveis” as pessoas que caminham, sem casa, sem saúde, sem emprego, por aí. Quando a nova peste e todas as suas cepas chegaram até nós em 2020, a palavra se multiplicou. Artigos, reportagens, editoriais: em tom grave, todos anunciavam que, graças ao vírus, estávamos finalmente conhecendo uma população até então escondida aos nossos olhos.
Mas tem um problema aí: ao atribuímos a “qualidade” de invisível às pessoas, passamos para elas toda a responsabilidade do próprio desaparecimento social e nos eximimos, imaculados, dessa questão. Cabe a pergunta: afinal, as pessoas são mesmo invisíveis ou nós escolhemos não vê-las?
Ou melhor: as pessoas são invisíveis ou são, reiteradamente, apagadas?
“Nessa mutilação de corpos, o Brasil fala sobre temas ainda atuais: fala sobre a miséria do pobre, da miséria da diferença e de outras mais. Convivemos lado a lado, por essas mutilações, com a expressão crua e seca da violência contra a condição humana”.
Quando comecei a escrever sobre Ester, Lorraine e Roberta, a mecânica dessa formidável e cruel geringonça de desaparecimento ficou ainda mais exposta para mim. Adianto: a primeira morreu de insuficiência renal aguda no Hospital das Clínicas de São Paulo. A segunda morreu queimada enquanto dormia nas ruas de São Bernardo dos Campos, em São Paulo. A terceira também foi queimada, no Recife, e passou duas semanas hospitalizada. Teve os dois braços amputados em decorrência dos ferimentos profundos. Roberta estava viva quando comecei esse texto. Morreu quando o finalizei, na sexta-feira, 9.
Todas tentaram, como eu e você, estar aqui, vivas ou íntegras, no meio das pestes.
Liguei para delegacias, hospitais, IML, assessorias de imprensa. Tentei famílias, companheiros, colegas. Procurei na internet. Da primeira, consegui a data de entrada no HC, dia 5 de setembro de 2020. Ficou 151 dias lá até morrer no dia 3 de fevereiro de 2021. Tinha 31 anos.
Da segunda, sei que morreu ano passado com 80% do corpo queimado e foi enterrada três dias antes de fazer 34 anos, em 11 de novembro. Da terceira, sei um pouco mais: tinha 33 anos e uma mãe que foi ao hospital rezar pela filha e que sofreu vendo o seu estado. Torceu para que ela se recuperasse do ataque e da dependência química. A queria de volta, em casa, “direitinha”.
“Por meio dos jornais, nossa história é narrada nesses pedaços de corpos que trazem o cotidiano brasileiro sem metáfora e sem véu, apresentando a qualidade de vida que temos, a vida que nos é negada e os modos de viver que convivem com o medo, com a culpa e com as armas”.
Os trinta e poucos anos que estas pessoas transexuais ou travestis tinham ao morrerem sozinhas ou ao serem assassinadas não é mera coincidência: estão dentro do padrão de idade máxima vivido por esta população no Brasil, 35 anos (dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais, Antra). É a metade da expectativa de vida do restante da nação.
Como no país um número é quase nada – passamos de meio milhão de mortes por covid-19, mas há quem chore apenas por vidraça de banco –, pode-se ilustrar esse extermínio cotidiano de outra maneira. Tente lembrar quantas travestis e transexuais idosas ou mesmo de meia idade você conhece ou vê circular por aí. Tente encontrar travestis e transexuais saudáveis, com empregos não estigmatizados, nos mercados, shoppings, praias, feiras-livres, consultórios médicos, escritórios de engenharia. Sim, elas existem. Mas a maioria é apagada no meio da caminhada.
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