terça-feira, 12 de janeiro de 2021

Carlinhos Maia e o Instagram como meio perverso de superar a pobreza Em um país no qual ser visto pode representar a chance de ser cidadão, o alagoano surge como representante de um fenômeno em que sair da pobreza é uma conquista pessoal, uma louvação à meritocracia.

 JAMAIS VOU ESQUECER: estava fotografando, caminhando pela praia de Japaratinga, litoral norte de Alagoas, quando vi um grupo animado em torno de um pequeno fogareiro. Um barco de madeira fazia as vezes de apoio, a música estava alta e o cheiro de churrasco tomava conta. Fiquei olhando de longe e, aos poucos, fui me aproximando.

Vi duas mulheres muito bonitas, uma com cerca de 70 anos, outra mais jovem, e acenei. Me apresentei, falei que era jornalista e pesquisadora e perguntei se poderia fotografá-las. Elas, mãe e filha, responderam que sim e deixaram que eu as registrasse ali, vestidas com seus maiôs coloridos, comendo, bebendo e celebrando com amigos e famílias.


Quando terminei, agradeci a ambas. A mais velha, mulher miúda, magrinha, respondeu: “obrigada a você por nos fotografar”.


Aquilo me marcou para sempre. A frase daquela senhora sugeria o peso que a atenção midiática tem sobre populações localizadas em setores menos prestigiados da sociedade: as perguntas sobre em que TV eu trabalhava me mostraram que elas posavam para a jornalista, não para a pesquisadora.


Desde então, passei a perceber que, para pessoas pobres, ser visto amplamente é extremamente importante, e isso faz todo sentido.  Em um país com uma profunda desigualdade social como o Brasil, ser visto também está relacionado a uma condição de ser cidadã ou cidadão. Ser alguém que não merece o limbo imposto pela invisibilidade – ou por uma visibilidade distorcida. É através da tecnologia, das imagens, das redes sociais, que muita gente passa a existir, o que nos força a repensar a ideia, muitas vezes elitista, de que toda necessidade de aparição é um exercício egocêntrico, de exibição, de pura vaidade.


Lembrei o tempo todo da frase daquela senhora nos últimos dias de 2020, quando, mais uma vez, o nome do alagoano Carlinhos Maia, rapaz pobre que se tornou muito rico ao arregimentar milhões de pessoas nas suas redes sociais – cerca de 21 milhões seguidores no Instagram, 6,1 milhões no Facebook e 2,2 milhões no Twitter, dominou o noticiário de celebridades. Há alguns anos, me interesso pela relação celebridade e pobreza.


Antes, um aviso: o fato de você não saber quem é ou quem era Maia não diminui o poder que ele tem sobre uma audiência muito significativa. Celebridades, gostemos ou não, são essenciais para entender a cultura contemporânea e o que se passa na sociedade.

Basta lembrar que o quase ex-presidente da nação mais rica do mundo, Donald Trump, capitalizou sua persona através  do reality show “The Apprentice” – no Brasil, o programa se tornou “O Aprendiz”. Já o atual presidente da Ucrânia, o ex-comediante Volodymyr Zelensky,  fez fama como humorista. Ainda no Brasil, temos um presidente talhado para as multidões através de programas como o extinto CQC e o SuperPop e, nunca esquecer, de jornais, revistas e sites “sérios” que higienizaram sua figura ao classificá-lo apenas como um cara “polêmico”. Também não custa lembrar que há um rapaz chamado Luciano Huck de olho na presidência do país.

Maia, desde que se tornou famoso, volta e meia aparece como trend topic no Twitter ou em destaque em sites de celebridades. Nas últimas semanas, como você deve ter lido, ele realizou uma festa enorme na cidade onde nasceu, Penedo, a cerca de 160 quilômetros de Maceió. Após o encontro que reuniu centenas de pessoas, 47 delas teriam contraído a covid-19 e duas estavam na UTI.

Ao ser criticado, escreveu no Twitter: “O natal da vila vai acontecer, justamente para gerar ainda mais visibilidade para o povo da vila. Não teve ano passado. Tudo dentro da lei. Com autorização da sec de saúde, o número permitido de pessoas, bombeiro, polícia!! Testes, e desentoxicador!”.

É sobre ele, sua ex-pobreza e o que significa essa “visibilidade” da vila que quero falar.

Penedo tem 63 mil habitantes, apenas 30% deles em residências com esgotamento sanitário adequado e 50,5% da população com rendimento mensal de até meio salário mínimo. É gente com pouquíssima possibilidade de um dia realizar uma festança com presença de famosos ou de presentear alguém com uma BMW conversível no valor de R$ 700 mil, mimo de Carlinhos para o marido, Lucas Guimarães.

Há até pouco tempo tão pobre quanto seus conterrâneos, Maia surge como uma superpessoa que, hoje, não precisa passar pelos constrangimentos cotidianos de quem conta moeda para pagar os boletos e fazer a feira do mês. Mais ainda: não precisa necessariamente de um estado que o proteja, nem a ele, nem a sua família, nem muitos daqueles que moram na hoje midiatizada vila onde viveu. Ali, boa parte dos vizinhos e familiares se tornou também personagem dos stories de Maia, e muitos lucram com isso.


Quando já se tornara conhecido como o “rei do Instagram”, Maia postou vídeos da casa à beira-mar que deu de presente para Virgílio e Maria. Chorava. Finalmente realizava o sonho da mulher que o adotou, uma costureira negra e surda, que, assim como milhões de mulheres pobres brasileiras, sonhava com as carícias necessárias do conforto.

Em 2018, o rapaz divulgou uma cirurgia nos olhos que pagou para ambos. No texto, dizia: “com meu trabalho, consegui fazer a cirurgia que meus pais precisavam, sem ser pelo SUS! Tive condições de pagar a ‘saúde’ com dignidade dos meus anjos! Mas tenho fé que um dia isso será direito de todos”.

Não fica claro se o direito desejado para todos é o de um SUS melhorado (nos últimos anos, o processo é de desmonte) ou a conquista do dinheiro que, ele sim, vai garantir a dignidade
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