AMANHÃ, 2 DE JUNHO, FAZ UM ANO que Miguel Otávio Santana da Silva, cinco anos, morreu ao cair do 9º andar do edifício Píer Maurício de Nassau, centro do Recife. Desde então, vimos dezenas de vezes o rosto de Mirtes Renata, a mãe do menino, nas televisões, jornais, redes sociais, sites: procura manter-se visível tanto para que o caso não seja esquecido quanto para enquadrar a ex-empregadora, Sari Mariana Gaspar Corte Real, pelo crime de abandonar um menor.
Perto de Mirtes, há quase sempre outra mulher, silenciosa: é Marta Alves, sua mãe. Quando a notícia da morte de Miguel chegou para devastar Mirtes, Marta foi reconduzida violentamente até uma dor que ela já conhecia: seu filho José, um adolescente de apenas 14 anos, foi assassinado em 2005 por um policial à paisana. “Confundido com bandido” foi o argumento da polícia para justificar o crime.
Hoje, Miguel e José estão enterrados no mesmo túmulo.
Hoje, Miguel e José estão sobrepostos na memória de Marta.
Durante a entrevista na casa na qual elas vivem, os caminhões de plástico de Miguel organizados na estante da sala, o filho de Mirtes e o filho de Marta se mesclaram outras vezes na fala da última. Estudando e trabalhando ali perto, na cozinha, a filha ouvia o diálogo e corrigia a mãe. No começo, pensei que se tratava de um ato falho. Depois, entendi que Marta estava absolutamente correta: simbolicamente, Miguel morreu baleado em 2005. Simbolicamente, José voltou a morrer, caindo de um prédio, no ano passado.
Hoje, mãe e filha dividem a falta de dois garotos.
Hoje, mãe e filha dividem a mesma casa.
Antes, mãe e filha dividiam o mesmo local de trabalho.
Limpavam e cozinhavam em um dos apartamentos de 247 metros quadrados do Maurício de Nassau: quatro vagas na garagem, vista para o mar, cerca de R$ 2 milhões no mercado. Ao lado do edifício Pier Duarte Coelho, o prédio compõe as popularmente as chamadas Torres Gêmeas. Nos elevadores de ambos foi afixada uma nova legislação estadual criada justamente por conta da morte do filho de Mirtes: é a Lei n. 17.020 (13 de agosto de 2020), mais conhecida como Lei Miguel. O texto proíbe a circulação de crianças de até 12 anos sozinhas ou acompanhadas de menores de 18 anos em elevadores.
Mas há uma diferença extremamente eloquente entre os cartazes nos ascensores dos dois prédios: no do Pier Duarte Coelho, o nome de Miguel, apesar de não ser exigido legalmente no texto, surge no alto, em letras maiúsculas e vermelhas. No elevador do Pier Maurício de Nassau, onde ainda vive o casal Sari e Sérgio Hacker, o nome do menino foi suprimido. “Soube que não colocaram lá para não constrangê-la quando ela usasse o elevador”, comenta Mirtes, que trabalhou durante quatro anos para a família, de 2016 até aquele 2 junho de 2020.
A diferença dos cartazes: no elevador do prédio onde Sari Corte Real vive, não há referência a Miguel que dá nome à lei.Fotos: Reprodução
Marta passou seis dos seus 61 anos com os Hacker-Corte Real: primeiro, foi chamada por Sari para trabalhar como diarista duas vezes na semana. Quando a empresária teve o primeiro filho, a ex-doméstica foi contratada para trabalhar em tempo integral. O que ela nos fala a seguir é o extrato da “cordialidade” entre empregadores e empregadas domésticas no Brasil – a “cordialidade”, aliás, que a defesa de Sari tenta emplacar para mostrar o quanto a empresária é “do bem”, tranquila, enquanto Miguel era “complicado de lidar”.
“Quando a gente descia para ficar com as crianças na área de lazer do prédio, ouvia muitas conversas, as babás e empregadas de outras famílias dizendo que só almoçavam depois dos patrões, às vezes comendo só o que sobrava. Com a gente não era assim, eles às vezes viajavam para o exterior, traziam presentes. Aí a gente pensava ‘ah, tô na boa, tô no lucro’. Mas o serviço sempre aumentava, sabe? Pediam para que a gente ficasse mais um pouco com as crianças quando eles saíam, pediam para a gente ir trabalhar em um sábado, um domingo. Pediam para fazer um ou outro serviço na casa de outra pessoa da família… mas tudo sem diária extra. Nos agradavam, mas também era para isso. Aquelas coisas não eram de graça. A gente trabalhava por elas.”
Quando José morreu, Marta sofreu.
Quando Miguel morreu, Marta despertou.
“Sabe o que é pior? É a mentira. Mentir, dizer que ele correu e ela não conseguiu alcançar. Se ela tivesse falado a verdade, não ia mudar o que ela fez. Mas se não tivesse imagem do elevador, a gente nem saberia. Talvez a gente ainda estivesse trabalhando para ela. Se ela saísse do prédio, a gente iria com ela. Eu tinha me dedicado tanto àquela família. Quantas e quantas vezes eu deixei de dormir na minha casa para proteger os filhos dela? Porque com Miguel, era só uma questão de segundos, ela não teve paciência?”.
Essa espécie de racismo falsamente domesticado arreganhou os dentes sobre a família após a repercussão da morte do menino. Além da tentativa absurda de culpar o próprio Miguel pela tragédia – em defesa de Sari, argumenta-se até que o menino era “impossível de controlar” –, outros flashes da cordialidade oca foram espocando: entre os funcionários das torres, por exemplo, são muitos poucos os que ainda mantêm contato com as duas mulheres. “Um porteiro que era mais próximo da gente foi demitido. Depois disso, vários colegas de lá nos bloquearam no WhatsApp”, conta Marta.
Em julho de 2005, ela estava em casa, vendo televisão com Mirtes, quando o telefone tocou. Acompanhavam, terrível ironia, uma reportagem sobre o eletricista Jean Charles, morto por engano pela polícia de Londres naquele mês. “Eu vi aquilo e pensei ‘meu Deus, jamais quero passar por isso’… e no fim eu já estava passando”. Para Marta, a informação inicial era de que o filho havia quebrado as pernas em um acidente. Seu então marido, no entanto, já sabia que o adolescente estava morto, mas poupou a mulher.
“Quando cheguei lá, disse que queria ver José. Falaram que eu tivesse calma. Mas eu sabia que tinha alguma coisa errada, uma coisa no coração me dizia. Aí veio uma enfermeira, chamou meu companheiro, conversou com ele. Daqui a pouco, vem passando um corpo na maca, coberto. Aí eu disse ‘esse aqui é meu filho’. Disseram que não, mas eu fui lá e puxei o lençol. Era ele.”
Quando José morreu, Marta sofreu.
“O meu irmão não pode nem reagir. Ele tinha sido internado um ano antes, pegou um germe que foi para o cérebro. Ficou com sequelas, o raciocínio lento. Tinha dificuldades na escola, as crianças tripudiavam. Quando aconteceu, ele não reagiu. Quem presenciou disse que ele só chamava por mainha e painho.”
Quando José morreu, Mirtes sofreu.
A investigação, como é comum quando se mata um pobre José no Brasil, não andou: apesar de várias pessoas terem presenciado o crime, somente uma depôs. O rapaz que era procurado pelo policial fugiu com a mãe (outra mãe na mira de uma perda), e os boatos de que o policial voltaria para confrontar possíveis denúncias cresceu. O Centro Dom Helder Câmara de Estudos e Ação Social (Cendhec) chegou intermediar o caso e tentar garantir proteção para a família de Marta, mas o medo era grande. Assim, veio o silêncio.
“Se a gente mexesse naquilo, a gente morria. Então tinha que se calar. Foi muito difícil reorganizar tudo, difícil aceitar que não tinha mais meu filho, difícil ter que me controlar porque tinha Mirtes para criar. Tinha dias que eu gritava. Gritava não, urrava. Eu queria meu filho de volta. Só que eu não ia ter mais.”
Dezesseis anos depois, Marta tem na parede uma foto de José em sua primeira comunhão, algumas roupas muito bem guardadas do adolescente, e a memória que abriu uma porta para a chegada de Miguel. Dezesseis anos depois, Marta tem à sua frente a filha passando também pelo mesmo arranco de vida, de futuro, de possibilidade, a filha que ela, novamente, teve que se levantar para cuidar.
“Um passo dela são dois passos meus na frente. O que ela decidir fazer, estou junto. Dou o apoio que eu tiver, a maior força que eu tiver. Eu dou tudo pra ela. Hoje o medo existe, mas o medo nos faz mais fortes”. Foi a terceira vez durante a entrevista que Marta falou “medo” em relação ao caso Miguel. Perguntei:
“A senhora tem medo de que, exatamente?”
Marta preferiu não me dizer.
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