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UM ADVOGADO do Departamento de Justiça dos Estados Unidos contatou repetidamente pesquisadores do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, o MIT, perguntando – por vezes, sob ameaça de intimação – sobre um estudo que haviam feito sobre a eleição presidencial boliviana de 2019. É o que mostram emails obtidos pelo Intercept. Enviados entre outubro de 2020 e janeiro de 2021, os emails apontam para a existência de um inquérito do Departamento de Justiça e somam novas evidências para apoiar as alegações bolivianas de que os EUA estavam envolvidos no golpe ocorrido no país sul-americano em 2019.
Os emails revelam o envolvimento, não noticiado anteriormente, do Departamento de Justiça dos EUA na investigação criminal do regime golpista boliviano que buscava comprovar uma suposta fraude eleitoral. O inquérito teve como alvo dois pesquisadores respeitados do MIT e questionava seu trabalho feito para o Centro de Política Econômica e Pesquisa, no qual eles refutaram amplamente as suspeitas de que o partido socialista da Bolívia havia fraudado a eleição.
O regime golpista, que durou pouco, chegou ao poder seguindo um roteiro claro: nas semanas que antecederam a eleição presidencial em outubro de 2019, a oposição encheu as redes sociais e televisão de propagandas intermináveis alertando que o então presidente Evo Morales se valeria de fraudes generalizadas para ganhar a reeleição. Morales foi o primeiro presidente indígena eleito na Bolívia, em 2005, à frente do seu partido Movimento ao Socialismo, o MAS, e em 2019 estava concorrendo ao quarto mandato. Ele enfrentou intensa oposição, muitas vezes estruturada em termos explicitamente racistas, vinda de uma coalizão Frankenstein de bolivianos conservadores de ascendência europeia e apoiadores do ex-presidente Carlos Mesa, um antigo membro do partido revolucionário de esquerda da Bolívia, que depois se tornou hostil ao governo social-democrata de Evo Morales.
Conforme os votos eram contados na noite da eleição de 2019, Morales estava à frente, como esperado. A questão era se ele venceria por margem suficiente para evitar um segundo turno, que na Bolívia só acontece se um candidato vence o primeiro turno por margem inferior a 10 pontos percentuais. Em uma contagem não oficial, Morales estava à frente de Mesa por 7,9 pontos, dando à oposição a esperança de um segundo turno. Mas, quando a contagem oficial foi divulgada, Evo tinha vencido por 10,6 pontos. Com isso, não haveria segundo turno.
Sem evidências, a oposição imediatamente levantou acusações de fraude. E foi apoiada no dia seguinte pela Organização dos Estados Americanos, a OEA, a poderosa organização de cooperação pan-americana sediada em Washington, D.C.
“A Missão da OEA expressa sua profunda preocupação e surpresa com a mudança drástica e difícil de explicar na tendência dos resultados preliminares revelados após o fechamento das urnas”, dizia a incendiária declaração da OEA. Manifestantes foram às ruas; os militares pediram que Evo Morales renunciasse; e a oposição instalou uma nova líder, Jeanine Áñez, após três semanas de agitação. Muito à direita de Carlos Mesa, Áñez assumiu o cargo e rapidamente buscou eliminar o sentimento de emancipação dos povos indígenas que o governo Evo havia trazido. Enquanto 14 dos 16 membros do gabinete de Morales eram de origem indígena, Áñez não indicou um único indígena para o seu primeiro Ministério. Nos dois meses anteriores à posse, ela tuitou que Evo era um “índio pobre” e deu a entender que os indígenas não podem usar sapatos. Ao chegar à presidência, ela declarou que “a Bíblia voltou ao palácio”.
A ex-presidenta interina da Bolívia, Jeanine Áñez, é escoltada em La Paz por membros da Força Especial de Combate ao Crime após ser presa, em 13 de março de 2021. Foto: Aizar Raldes/AFP via Getty Images
O golpe, praticamente seguindo o mesmo roteiro que o presidente Donald Trump tentaria um ano depois, estava completo.
Mas a imprensa dos EUA recusou-se a chamá-lo de golpe, e em vez disso aceitou as alegações de fraude sem questionar.
“A linha que separa golpes de revoltas pode ser confusa, até mesmo inexistente”, escreveu Max Fisher no New York Times. Ele citou o que o cientista político Jay Ulfelder chama de “golpe de Schrödinger” — aqueles casos que “existem em um estado perpétuo de ambiguidade, simultaneamente golpe e não-golpe” — e descartou a distinção como “antigos binários” agora considerados “desatualizados” pelos acadêmicos.
O New York Times não se debateu tanto com as alegações de que o partido de Evo Morales havia fraudado a eleição. Sua cobertura de outubro de 2019 reproduziu as promessas da oposição de que haveria um relatório “condenatório” não divulgado da OEA, levantando “a perspectiva de que a vitória de Morales seria considerada ilegítima pela comunidade internacional”. O principal diplomata do governo Trump para a América Latina, Michael Kozak, condenou o governo Morales e prometeu que os EUA iriam “trabalhar com a comunidade internacional para responsabilizar qualquer pessoa que enfraqueça as instituições democráticas da Bolívia”.
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