Luiz Eduardo Soares é uma das vozes mais importantes do debate sobre segurança pública no Brasil. Escritor, antropólogo e doutor em Filosofia Política, teve experiência como gestor público nas três esferas de governo (municipal, estadual e federal). Transita do debate acadêmico para a prática com facilidade ímpar. E, com conhecimento empírico, evita os chavões sobre o tema.
A trajetória de Luiz Eduardo Soares na linha de frente do enfrentamento à violência institucional tem mais de 30 anos. A experiência vai do comando de secretarias de segurança pública em cidades e no Estado do Rio de Janeiro à chefia, por nove meses, da Senasp (Secretaria Nacional de Segurança Pública) do Ministério da Justiça no início do primeiro governo Lula (PT), em 2003.
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Em entrevista ao Brasil de Fato, ele comentou o atual estado das políticas de segurança pública no país à luz de um episódio ocorrido em 28 de março deste ano, quando um soldado da Polícia Militar da Bahia foi morto.
Na ocasião, Weslei Soares morreu, segundo nota da Secretaria de Segurança Pública da Bahia, "depois de disparar com fuzil contra guarnições do Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope)". O órgão disse que houve negociação por 3h30 e que o soldado aparentava estar em "surto psicótico".
O caso ocorreu no Farol da Barra, ponto turístico de Salvador. O homem chegou ao local por volta de 14h, em um carro particular, e rompeu a barreira que isolava a região. A repercussão da morte dividiu opiniões na internet. Uma série de publicações defendeu que a atitude do policial teria sido um "ato heróico" contra as medidas de restrição impostas para conter o avanço da pandemia da covid-19 em Salvador – um dos indícios para tal é que ele estaria com o rosto pintado de verde e amarelo.
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Leia a entrevista:
Brasil de Fato: Qual avaliação o senhor faz do caso do soldado da Polícia Militar da Bahia que fez um protesto no Farol da Barra, em Salvador, em março deste ano, e acabou morto?
Luiz Eduardo Soares: É um caso que deveria ser objeto de contemplação atônita e respeitosa. Por outro lado, é sintoma de um problema muito real presente não apenas na Bahia, mas no país todo. A saúde mental dos profissionais da segurança pública está abalada por conta de condições de trabalho.
Os policiais são, com muita frequência, em muitas partes do país, submetidos a jornadas de trabalho e a condições humilhantes e indignas. O sistema lhes impõe uma exploração extrema, particularmente os militares. Eles sequer têm a possibilidade de enunciar, de explicitar objeções, questionamentos que poderiam impor limites a essa taxa de exploração do seu trabalho, de sua força de trabalho.
Como as instituições policiais e governos lidam com problemas como esses?
As instituições não oferecem atendimento adequado porque não dispõem do número suficiente de profissionais, nem de consórcios e alianças que possam oferecer profissionais especializados. Então, temos de fato um problema muito grave no que diz respeito ao alcoolismo, drogadição e perturbações mentais de todos os tipos. Os profissionais estão esgotados, estafados, cobrados, submetidos a toda ordem de demanda e nessas condições de trabalho desumanas.
Também sabemos que segmentos policiais em um número significativo se corrompem e promovem aquilo que eu tenho caracterizado desde os anos 80 de um verdadeiro genocídio de jovens negros e pobres nas periferias e favelas brasileiras. As condições de trabalho instigam a prática da violência porque estão relacionadas ao sofrimento psíquico. É um caso muito triste. Mas que é sintoma também do oportunismo golpista daqueles que professam convicções fascistas e não merecem nem a nossa atenção. Apenas o nosso repúdio.
Como enxergar esse episódio do ponto de vista histórico?
Eu acho fundamental que nós contemplemos essa situação numa perspectiva histórica. O Brasil é o país do racismo estrutural, das desigualdades profundas. E, ao longo da ditadura instaurada em 1964, as instituições policiais, cuja herança histórica remonta ao período escravocrata, foram reordenadas segundo princípios autoritários. Surgiu uma nova arquitetura institucional da segurança pública, sobretudo a partir de 1969.
Durante a transição para a democracia, aqueles que representavam o poder determinante, que ainda exerciam influência na correlação que marcava o conjunto das forças impuseram algumas condições. Naquele processo de negociação, que culminou com a promulgação da Carta de 1988, eles impuseram aos representantes do antigo regime uma reserva estratégica relativa à área da segurança. O acordo era que aquelas instituições da segurança pública permaneceriam intocadas. Essas foram as condições impostas nas negociações.
Qual o legado desse acordo?
Isso significou o seguinte: a arquitetura institucional da segurança pública e o modelo policial foram preservados, mantendo-se à margem da transição democrática. Nós, então, somos herdeiros desse legado da ditadura. As instituições permaneceram intocadas.
Nas redes sociais, em que utilizou a seguinte frase: "Há anos tenho alertado que o ovo da serpente já tinha sido fecundado nas instituições policiais". Essa fecundação estava ocorrendo desde a transição democrática? Não se trata de um fenômeno bolsonarista?
Eu, muitos companheiros e companheiras de jornada, pesquisadoras, membros de movimentos pelos direitos humanos, ao longo destas décadas, temos chamado a atenção reiteradamente para o fato de que essa "cultura", entre aspas mesmo, justifica a execução extrajudicial, aposta no encarceramento voraz de jovem negros, jovens pobres e investe na guerra às drogas de uma forma absolutamente irracional e cruel.
As consequências são danosas. Isso acaba forjando a emergência de uma liderança que seja o espelho disso tudo, dessas práticas e desses valores, não é? E, portanto, não é surpresa que tenha havido um casamento ideológico com a liderança de Bolsonaro.
Embora tenha havido estabilização econômica e redução das desigualdades no período de transição democrática, nos anos FHC, Lula e Dilma, a questão da segurança pública parece não ter avançado. Como você enxerga esse tema?
Você tocou em um dos pontos-chave. É uma das questões mais desafiadoras e nós temos que enfrentá-las. Temos que compreender como é que o Brasil pôde avançar em tantas áreas e permanecer inerte e cúmplice diante de algo que se reproduzia à margem dos avanços democráticos. É um enigma para nós que atores sociais e políticos comprometidos efetivamente com a democracia tenham aceitado conviver com essa duplicidade.
Hoje, qual é o quadro que nós temos? Homicídios em escalas absurdas e investigações diminutas. Nós sequer temos indicadores precisos que nos digam exatamente qual a taxa de esclarecimento dos homicídios no Brasil, por região, etc. Ou seja, há uma impunidade elevadíssima relativamente ao crime mais grave, o crime contra a vida.
Isso sugere negligência, evidentemente, quando isso se estende no tempo, e indiferença, em algum nível. E por que isso? Porque a grande maioria das vítimas são jovens, negros e pobres. São aqueles, entre aspas, matáveis, descartáveis, invisíveis. Lamentavelmente, esse é mais um retrato do Brasil e esse ciclo se perpetua. Nada mais equivocado do que extrair daí a conclusão de que o Brasil é o paraíso da impunidade. Precisamos lembrar que nós temos a terceira população penitenciária do mundo, não é? Estamos chegando a 800 mil presos, há uma explosão do encarceramento.
De quem é a responsabilidade?
O governo Bolsonaro é responsável por não alterar esse quadro, mas ele não inventou esse cenário. Isso está dado para nós historicamente. Nós temos que ter consciência disso. Como você disse, os governos sociais democratas do PSDB, do PT, que tinham um compromisso com a equidade, com a Constituição, com a democracia, agiram em algumas frentes, mas abdicaram de intervir nessa máquina de moer gente e de moer também profissionais de polícia.
É possível ter otimismo em relação a esse tema mesmo diante de um cenário de retrocessos? A sociedade evoluiu no debate sobre segurança pública nas últimas décadas?
No longo prazo, o otimismo se impõe, porque se nós não tivermos esperança nós nem atravessamos a rua. Sem fé, você não toma nem um picolé. É preciso que nós sejamos dirigidos com certa expectativa de que haverá futuro. E de que o futuro merecerá ser vivido, porque nós precisamos dessa esperança para alimentar a nossa disposição de viver, de continuar, seguir adiante.
Por outro lado, para que isso seja mais do que um sonho, uma esperança vazia ou retórica, nós temos que pavimentar esse caminho, não é? De uma maneira bastante objetiva: não podemos nos iludir. Não, não houve avanço. A sociedade continua orientada e sobretudo depois da Lava Jato e dessa verdadeira expansão do culto à punição, à vingança. O ódio se tornou o afeto regente, o afeto dominante. Nós não avançamos na direção da compreensão da problemática de segurança pública, que é tão complexa.
Quem é que está disposto a, de fato, discutir a Lei de Drogas? Quem está disposto a, de fato, repensar a arquitetura institucional de segurança pública e modelo policial nesse contexto? Pode ser que algumas lideranças políticas tenham se tornado mais sensíveis, observando o quadro internacional. Os movimentos sociais brasileiros são cada vez mais ativos e enfáticos. Os movimentos têm ampliado a sua consciência, o seu repertório está mais rico, mas isso é muito pouco.
Edição: Vinícius Segalla
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