O vídeo de uma abordagem policial truculenta no município de Ocidental, em Goiás, revolta internautas desde a noite dessa sexta-feira (28). Nas imagens, dois policiais são flagrados apontando armas para um jovem negro e dando ordens de forma agressiva. O que o rapaz estava fazendo? Gravando um vídeo sobre manobras de bicicleta. Um especialista ouvido pelo BHAZ destaca que o caso acende alertas sobre racismo estrutural e institucional (veja abaixo).
O jovem que aparece nas imagens foi identificado como Filipe Ferreira, um youtuber que produz conteúdos sobre manobras em bibicletas. No momento da abordagem, que, conforme a PM de Goiás informou ao BHAZ, será apurada, ele estava justamente gravando mais um dos quase 100 vídeos de manobras que podem ser vistos em seu canal no Youtube. A câmera apoiada mostra o jovem treinando os movimentos enquanto uma viatura se aproxima ao fundo.
Assim que desce da viatura, um dos policiais pede a Ferreira que saia de perto da bicicleta e logo em seguida já aponta a arma para o rapaz. Durante dois minutos, o oficial mantém o revólver em punho e se exalta diversas vezes enquanto repete para o jovem colocar as mãos na cabeça. “[Vamos] algemar. Resiste aí para você ver o que vai acontecer contigo”, diz (leia o diálogo na íntegra abaixo).
Com poucas horas da publicação, o vídeo viralizou e gerou revolta em milhares de pessoas nas redes sociais. Muitos defenderam a atuação dos policiais, mas vários apontaram questões problemáticas na abordagem. “Se fosse a gente branco, certamente a abordagem não seria assim, como é um negro, e a revolta do cara é legítima, ele deve passar por isso constantemente”, argumentou um rapaz.
“Ele estava correndo. Os PMs provavelmente entenderam que avistou a viatura e está saindo”, disse um segundo, defendendo que, a princípio, a abordagem foi “normal”. “Mas se fosse uma pessoa branca na bike, certeza que veriam apenas como uma pessoa andando de bike e não fugindo porque viu o carro da polícia”, rebateu uma usuária.
“O racismo está bem claro no vídeo. Um negro andando em alta velocidade de bicicleta só pode ser ladrão. Esse é o pensamento do policial. Isso é racismo? Claro que sim”, complementou um terceiro.
‘Procedimento da polícia’
Outro ponto que gerou revolta com a repercussão do vídeo foi o argumento utilizado pelo policial de que o tipo de abordagem flagrada nas imagens é “procedimento” dos oficiais. Não demorou muito para os internautas resgatarem outra abordagem policial de grande repercussão – mas, desta vez, com um homem branco como alvo – e o termo “Alphaville” foi parar entre os assuntos mais comentados do Twitter.
O episódio em questão envolveu policiais de São Paulo há cerca de um ano. Ao atender uma denúncia de violência doméstica no condomínio Alphaville, os agentes foram humilhados pelo empresário Ivan Storel – alvo das acusações, que resistiu à prisão. “Você pode ser macho na periferia, mas aqui você é um bosta. Aqui é Alphaville, mano”, diz o empresário.
No vídeo, que também repercutiu muito à época, os policiais não esboçam nenhuma reação mesmo diante de xingamentos e berros do homem. “Você é um bosta. É um merda de um PM que ganha mil reais por mês, eu ganho 300 mil reais por mês. Não pisa na minha calçada, não pisa na minha rua”, diz (relembre aqui e aqui).
“Procurem os vídeos dos policiais abordando garotos brancos sem documentos na Av. Paulista e do empresário branco de Alphaville sendo abordado por suspeita de violência doméstica. Aí vocês veem a diferença”, comentou um internauta em resposta a comentários sobre a abordagem de Filipe nessa sexta.
Racismo estrutural e institucional
Apesar de o caso ter dividido opiniões entre os internautas, trata-se de um episódio que ilustra bem como o racismo impregnado na estrutura social e nas instituições continua fazendo vítimas, conforme alerta Gilberto Silva, advogado especialista em crimes raciais. Ao BHAZ, ele explica que a “falsa democracia racial” que existe no Brasil é o que ajuda a impulsionar o pensamento de que esse tipo de abordagem é correta.
“Quando a gente vê pessoas não-negras em outras situações, não existe esse tipo de abordagem, porque a gente tem que lembrar da criminalização das pessoas pretas”, ressalta o advogado. “Foi incutido na mente das pessoas aquele ditado: ‘Preto parado é suspeito, correndo é ladrão’. Então, esse racismo está impregnado na sociedade, em todos os setores”, afirma.
Gilberto reforça ainda que tratamentos diferenciados – como jovem negro andando de bicicleta X empresário branco denunciado por violência doméstica – podem sim ser enquadrados como crime de racismo. “Nesse caso específico, é importante fazer uma analogia, porque, apesar de não terem proferido palavras de cunho racial, o tratamento é discriminatório”, complementa.
Mesmo assim, as instituições brasileiras ainda têm muito o que avançar neste quesito, conforme aponta o especialista. “Não está especificado na lei essas atitudes dos policiais. Mas a gente tem que lembrar também da conotação do racismo sociológico, do racismo histórico. Infelizmente a legislação ainda é falha”, diz o advogado, que ainda complementa: “Mas está mais do que na hora dos poderes reconhecerem essa situação e tipificar como crime de racismo”.
E esses problemas não aparecem apenas quando pessoas negras são abordadas nas ruas. “Esse racismo está impregnado na sociedade, em todos os setores. Seja na segurança pública, seja no Judiciário, e há sim esse tratamento diferenciado entre pessoas não-negras e pessoas negras, deixando sempre as pessoas negras sendo tratadas com extrema violência, seja ela policial, seja ela intelectual, seja ela de Justiça”, pontua Gilberto.
Desobediência X direito
O advogado põe em xeque ainda vários argumentos publicados nas redes sociais de que o youtuber teria “desacatado” os policiais e, por isso, acabou detido. “Ao falar de desacato e desobediência, a gente tem que lembrar que é a não observância da ordem num geral. Questionar, perguntar por que está sendo abordado, tentar se identificar, mostrando que não estava oferecendo nenhum risco para a sociedade ou para os policiais não quer dizer que há desobediência ou desacato”, explica.
“Essas abusividades nas abordagens têm sido ditas pelos policiais como um desacato para poder justificar a truculência, a violência, e na verdade não é isso, complementa Gilberto. Ainda segundo ele, mesmo se tratando de uma abordagem policial, o diálogo deve permanecer, já que, no caso do vídeo, o rapaz não estava em nenhuma situação de crime.
“Na verdade, o estado emocional da pessoa que foi acionada se altera e, em vez de ele revidar com violência, ele tentou se justificar enquanto cidadão”, reforça o especialista.
Reação correta
E, ainda segundo Gilberto, a reação de Filipe ao ser abordado foi a correta. “Ele demonstra que sabe seus direitos, tenta, de certa forma, mostrar para os policiais que ele não estava em nenhum tipo de situação [criminosa]. Ele reconhece que tem, no caso de uma prisão, o direito a uma ligação”, detalha.
Gilberto reforça, no entanto, que, no caso de uma abordagem policial, “seja ela truculenta ou não, o procedimento inicial é sim identificar-se para o policial”. “Só que a gente tem que lembrar também que é quando há uma situação de perigo, que não é o caso deste rapaz. Situação de perigo é o estado de flagrância de algum crime ou alguma fuga. Em situação de perigo, não há o que se falar ou se questionar a abordagem”, explica.
Mas esse não foi o caso do rapaz. “Trata-se de um rapaz negro, que sabe das diferenças que existem no dia a dia. A reação dele é uma reação à ação policial. Certamente esse jovem ficou com medo de ser alvejado, de ser violentado e até mesmo pode ter temido pela sua vida”, ressalta o advogado.
O motivo do medo, caso não tenha ficado evidente no tom da abordagem, também é justificado pelos números. Conforme constatado pelo Mapa da Violência da ONU (Organização das Nações Unidas) e lembrado por Gilberto: a cada 23 minutos, um jovem negro morre no Brasil.
E o alerta vale para todos, especialmente os que têm mais dificuldade de enxergar: “Esse racismo estrutural existente na sociedade e os impulsos que o líder máximo do Estado brasileiro faz nesse sentido fizeram com que a sociedade brasileira perca a noção do quanto o racismo é perigoso, do quanto ele está presente”.
O que diz a PM?
Procurada pelo BHAZ, a Polícia Militar de Goiás informou, por meio do Comando de Correções e Disciplina, que a Corregedoria da corporação “tomou conhecimento do vídeo” e encaminhou um “registro para apurar o fato”. A reportagem também tentou contato com Filipe, mas não obteve sucesso. Caso ele se manifeste, esta matéria será atualizada.
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