quarta-feira, 31 de julho de 2019

“O nosso sistema prisional não resolve o problema do crime. Ele cria mais crime”

“A indiferença por si só já é um índice da barbárie”, alerta Carolina Catini, doutora em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP). Diz isso em “Educação contra a barbárie”, coletânea de ensaios recentemente lançada pela Boitempo Editorial, ao tragicamente constatar como naturalizamos a mazela de uma juventude pobre sendo alijada da escolarização, ao mesmo tempo em que ela é atingida pelo genocídio ou pelo encarceramento em massa.

Falando em sistema penitenciário, felizmente emergem também do ambiente acadêmico obstinadas tentativas de se nadar na contracorrente da desumanização, sobretudo daquela vinda dos tribunais da internet e dos nefastos programas policialescos de TV. Decerto, uma afrontosa ousadia de pesquisadoras e pesquisadores, em tempos de cruzadas obscurantistas contra o saber, obcecadas por revitimizar quem sempre viveu privações extremas; quem do Estado só foi merecedora ou merecedor do cárcere (sim, o estado mínimo já existe, e faz tempo, para marginalizadas e marginalizados do sistema).

A jornalista Natália Martino percorreu esse trajeto, indo ver e entender intramuros as individualidades e as complexas relações internas e externas estabelecidas por detentas, na maior e mais antiga penitenciária de mulheres de Minas Gerais, o Complexo Penitenciário Feminino Estevão Pinto (PIEP), em Belo Horizonte. Na empreitada, aprofundou-se nas múltiplas camadas daquele tecido social, onde um senso comum bestializado enxerga apenas uma irrecuperável massa de criminosas.

Ao fim da imersão nesse ambiente (que pouca gente conhece, mas que tantos teimam em sobre ele “teorizar” a partir das mais estúpidas e rasas manifestações), a pesquisadora defendeu sua dissertação de mestrado no programa de pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), intitulada “Mulheres encarceradas: cruzamentos entre redes familiares e redes prisionais”. Alcançou com o estudo o segundo lugar no Concurso de Monografias, Dissertações e Teses do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), o que foi anunciado em julho.


Duas perguntas centrais conduziram o trabalho: 1) como os familiares das mulheres presas participam das dinâmicas prisionais; e 2) como as famílias se reorganizam depois da prisão dessas mulheres.


Na definição do objeto de pesquisa, Natália valeu-se de experiência anterior: a atuação na busca de narrativas que ajudam a entender o ambiente carcerário, jornada pela qual em 2017 lançou, juntamente com o fotógrafo Leo Drumond, o livro “Mães do Cárcere”; e que mantém viva, por meio da revista A Estrela.



Dias depois do anúncio do reconhecimento nacional à dissertação, Natália Martino falou com exclusividade ao Congresso em Foco.

O trabalho de campo de seu estudo foi feito em uma penitenciária, ambiente de privação de liberdade e, não raro, de muitos outros direitos. Que histórias ou narrativas foram mais impactantes durante essa fase da pesquisa, momento em que esteve mais próxima das mulheres encarceradas?

Faço trabalhos em unidades carcerárias há alguns anos, femininas e masculinas, e já estive em diferentes prisões. Nas mais precárias, o que impressiona no início é o mau cheiro e a escuridão. Mas em qualquer caso, são as histórias das pessoas presas que mais impactam, com as dificuldades de se escapar dos ciclos de violências, e com formas de adaptação e sobrevivência às pressões daquele ambiente insalubre.

Por exemplo: em um dos presídios onde trabalhei, vi presos sendo escoltados para fora das celas com muito sangue sobre o rosto. Soube depois que eles se cortavam nos braços e passavam esse sangue nos rostos para serem retirados por alguns minutos das celas superlotadas. Diziam-me que não me preocupasse, afinal, não era nem briga nem tentativa real de suicídio. Um mês depois de ver essas cenas, voltei à unidade, e um dos presos havia efetivamente se suicidado. Para mim, é impactante tanto a necessidade de uma estratégia como essa para dar alguns passos fora da cela, onde se passa 23 horas do dia, quanto a conclusão trágica da história.

Em outro trabalho que fiz, convivi com presas em uma unidade prisional durante um ano. Criei algum vínculo com essas mulheres, ao vê-las constantemente, e saber de detalhes das suas histórias de vida. Ficava feliz ao saber quando alcançavam a liberdade. Em uma ocasião, porém, uma dessas ex-detentas foi assassinada pouco tempo depois de sair, em função, aparentemente, de uma dívida de drogas. Isso mexeu demais comigo. Foi a mais palpável percepção de que a violência ocupa uma parte muito grande da vida dessas pessoas, e que é muito difícil escapar.

Na unidade onde realizei o trabalho de campo para a dissertação, especificamente, há algumas peculiaridades que impedem alguns desses cenários mais impactantes à primeira vista. Não há, por exemplo, grande mau cheiro. Apesar disso, depois de um tempo, fica fácil perceber que a privação da liberdade em si é carregada de uma série de crueldades que lhe são intrínsecas, como a separação de mães e filhos, que acabam do lado de fora, à própria sorte, sem nenhuma assistência. Enfim, são as histórias pessoais, repletas de tragédias cotidianas, que mais impressionam.
Natália Martino conversa com detenta do Complexo Penitenciário Feminino Estevão Pinto (PIEP), no trabalho de produção da quarta edição da revista “A Estrela” (entre setembro e outubro de 2017). A instituição foi revisitada pela pesquisadora no trabalho de mestrado, que alcançou o segundo lugar no concurso do IBCCRIM, em julho (foto: arquivo “A Estrela”)
Há um predomínio de estudos científicos sobre prisões masculinas, ainda que estejamos vivenciando um crescimento proporcionalmente maior na população de mulheres presas. Temos aí mais um tipo de privação vivenciada por essas mulheres, mais “invisibilizadas” do que presos homens?


Essa invisibilidade começou a mudar na última década, em especial quando os dados oficiais passaram a destacar o crescimento exponencialmente maior da população feminina encarcerada, que, se segue minoritária (com algo entre 7% do total de presos), já é hoje, em proporção, muito maior do que era décadas atrás. Dados do Infopen [sistema de informações estatísticas do penitenciário brasileiro] indicam que, no período de 2000 a 2014, o aumento da população feminina foi de 567,4%, enquanto a média de crescimento masculino no mesmo período foi de 220,20%.


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Desde que isso se tornou notório, a academia começou a se voltar para o encarceramento feminino, na tentativa de entender suas peculiaridades. Também o Estado precisou buscar soluções criativas para as questões que se apresentavam, em especial no que diz respeito às gestantes presas, que geraram adaptações legais e estruturais no sistema penitenciário de todo o país. Podemos dizer, então, que essa invisibilidade tem sido reduzida, embora a ascensão do problema do encarceramento feminino na agenda acadêmica e governamental ainda apresente muitos desafios.

Um deles é o que eu evidencio em minha dissertação: o mais comum, em função da estrutura de gênero da nossa sociedade, é que as mulheres sejam centrais em suas famílias. Prender essas mulheres sem integrar a ação punitiva a ações sociais de atendimento e proteção, em especial aos filhos dessas mulheres, significa ampliar nossa desigualdade social, o que tende a impactar também no aumento, e não na diminuição, da violência.

Atualmente, sequer as estatísticas oficiais sabem quantas crianças desamparadas nossas políticas de encarceramento têm gerado e, a não ser em relação aos bebês nascidos na prisão, não há encaminhamento algum para os filhos de pessoas presas, o que tende a ser mais trágico no caso das mulheres, uma vez que as desigualdades de gênero em nossa sociedade acabam por imputar a elas a responsabilidade pelas famílias.


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