terça-feira, 28 de julho de 2020

Zema e a crônica de um surto anunciado: a negligência do governo infectou de coronavírus um presídio inteiro Documentos exclusivos mostram como o descaso com os presos fez a covid explodir em presídio de Manhumirim, interior mineiro.

Arte-Headerv21

 EM ABRIL, o governador de Minas disse que o vírus precisava “viajar um pouco“. Nessa fala estúpida e mortífera, Romeu Zema, do Novo, criticava os prefeitos que, ciosos da pandemia, estavam impondo medidas de isolamento para restringir a chegada do vírus. A preocupação do governador era o comércio.

Pois o vírus ouviu Zema, viajou para o interior e matou Lucas Morais, aos 28 anos. A negligência do governo Zema custou a vida de Morais, preso preventivamente há dois anos, com três habeas corpus negados, pelo porte de 10g de maconha, e pode custar a vida de outros detentos e servidores públicos do presídio de Manhumirim, distante 300 km da capital Belo Horizonte.

O presídio de Manhumirim, no interior mineiro, recebeu um preso transferido de Ipatinga em 19 de maio – e não o testou. Só no fim de junho, houve testagem em massa no presídio, na qual foi constatado que 162 dos 216 apenados estavam com covid. Era tarde.

Em pouco mais de um mês, 75% dos presos estavam infectados. Dos 56 trabalhadores do presídio, 43 foram testados e 13 deles estavam com o vírus. Nove deles foram afastados das funções. E a situação está prestes a se repetir em um asilo da cidade, a 2 km do presídio.

Essas informações constam em documentos, que obtive com exclusividade, de uma visita técnica feita à unidade prisional da região, depois do alerta vermelho do surto.

O relatório mostra que o que está ruim pode piorar: não há área de isolamento na cadeia de Manhumirim e apenas dois técnicos de enfermagem se revezavam nos cuidados aos doentes. Os presos foram separados em quatro blocos, mas o distanciamento entre eles era menor que o ideal e nem todos usavam máscara no dia da visita-técnica.

Relatório revela detalhes do surto no presídio de Manhumirim.
A professora da Universidade de Brasília Camila Prando, coordenadora do Infovírus, que monitora informações sobre a covid-19 no painel do Depen, alerta para um detalhe importante presente no relatório. O documento menciona que “alterações dos regimes prisionais foram definidas pelo jurídico, e isolamento domiciliar e a proteção individual foram orientados no momento da liberação da instituição”.



Ou seja, mesmo em meio a um surto de coronavírus, a unidade prisional liberou presos que, potencialmente, podiam espalhar a doença. Além disso, ao liberá-los, esses detentos deixaram de ser contabilizados na conta do sistema penitenciário e não há garantia de encaminhamento dos doentes para unidades de saúde.


“Enquanto o detento está lá, preso, e passa mal, em tese ele é encaminhada para tratamento, sob responsabilidade do estado. Quando o estado libera a pessoa contagiada, é como se ele desonerasse dessa obrigação”, reiterou Prando. Isso significa que a contagem das possíveis mortes dentro do sistema pode diminuir. “É um sinal que eles usaram essa estratégia. Parece uma estratégia de prevenção de contágio, quando na verdade é uma estratégia de desoneração da responsabilidade do estado”, observa a professora.

Enquanto estavam no presídio, os técnicos foram avisados de que o que acontecia ali estava prestes a se repetir no Abrigo São Vicente de Paulo, distante 2 km dali. O local, uma entidade de assistência social gerida pelo governo e que recebe idosos tinha, no dia da visita, 18 pessoas com sintomas de coronavírus. Uma delas foi internada, e havia outros dois pacientes em isolamento.

Mas Zema não é o único a virar as costas aos presídios.

Em março, eu revelei que a juíza responsável pela Vara de Execuções Penais de Roraima alertava para a situação dos presídios do Estado e pedia providências para conter a disseminação do coronavírus. Havia ali um presídio sem água encanada e em obras, com trânsito livre entre presos e pedreiros, que iam e vinham como se o país não estivesse em uma pandemia. O governo respondeu que não havia como cumprir todas as medidas. Dito e feito. Menos de dois meses depois o estado já registrava o segundo maior número de presos mortos por covid-19 no país, atrás de São Paulo.

O descaso com os detentos fez o Brasil ser denunciado na ONU e OEA pelo avanço do coronavírus nos presídios. As instituições que entraram com a ação dizem que o estado brasileiro deve ser questionado sobre violações de normas e recomendações internacionais em relação à falta de acesso à saúde, entraves ao desencarceramento, incomunicabilidade, problemas no registro de óbitos, rebeliões e uso de estruturas temporárias precárias para o abrigo dos presos.

O próprio Conselho Nacional de Justiça, o CNJ, aponta que, entre maio e junho, houve um crescimento de 800% no número de casos de coronavírus nos presídios do país. O aumento se deu num contexto de subnotificação: menos de 2% dos presos do país foram testados.

Na verdade, o que ocorre nas cadeias obedece padrão geral da negligência com a população brasileira. A pandemia já é grave sem o país saber a real dimensão do problema devido à subnotificação e à falta de testagem em massa. O quadro pode ser muito pior. Mas é como a frase-bordão: “0 que os olhos não veem, o coração – e a consciência  – não sentem.

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