segunda-feira, 6 de julho de 2020

A RAINHA DAS QUENTINHAS Empresária recebe milhões do governo do Ceará para entregar quentinhas a presos inexistentes


                    
Amistura de papel higiênico molhado com creme dental tornou-se um dos pratos típicos das penitenciárias cearenses, me contou por telefone Rodrigo*, que saiu recentemente da cadeia. “É uma forma de enganar a fome”, diz.  A mesma coisa me disse Silvana*, irmã de outro detento que ainda está preso. A comida entregue nas penitenciárias, segundo os dois, frequentemente chega azeda e o frango, principal proteína servida na quentinha, está sempre cru.

Relato parecido foi feito por uma presa que estava grávida. “Cansei de botar a colher no frango e escorrer sangue e eu comi assim mesmo, porque só tinha aquilo”, contou aos pesquisadores de um dossiê entregue em maio por familiares de detentos à Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do estado. Presa no começo da gravidez com 76 kg, ela chegou ao final da gestação 6 kg mais magra.

Rodrigo, o irmão de Silvana e a grávida passaram por presídios diferentes, mas com algo em comum: recebem alimentação da empresária Idalina Sampaio Muniz Gomes de Mattos. Ela conquistou quase metade dos contratos de refeições para presídios do Ceará nos últimos 12 anos, se tornando a principal fornecedora do governo cearense no ramo.

O problema, no entanto, não se limita à comida ruim. Mattos vem recebendo há anos por contratos duplicados e por quentinhas que não precisa entregar.

Hoje, a empresa de Mattos, a ISM Gomes de Mattos, atende 14 penitenciárias do estado. Tem sido um bom negócio. Um exemplo é o contrato 085/2019, assinado sem licitação em dezembro e encerrado no fim de junho. Por R$ 28,5 milhões, o governo comprou quatro refeições diárias por seis meses para cerca de 13 mil detentos e, aproximadamente, 1 mil servidores de oito unidades prisionais do estado. No entanto, em abril, segundo dados da Secretaria de Administração Penitenciária, havia menos de 9 mil presos nas unidades prisionais que constavam no convênio.

É uma diferença de 4 mil refeições diárias. Mas Mattos segue recebendo pelo valor total do contrato – ou seja, pelas 14 mil quentinhas. Duas prisões para as quais Mattos forneceria comida neste contrato e que seriam inauguradas em janeiro, a Unidade Provisória Regional e uma prisão de segurança máxima, inclusive, seguem em construção.

Mattos também lucra com refeições duplicadas para os mesmos presídios. Entre 2013 e 2014, as três Casas de Privação Provisória de Liberdade, de Itaitinga, na região metropolitana de Fortaleza, constavam ao mesmo tempo em dois contratos de fornecimento de quentinhas. Um deles foi assinado em 2008 e prorrogado até 2014; o outro foi assinado em 2013 e prorrogado até 2019. Ambos considerando aproximadamente o mesmo número de presos.

Esse contrato de 2013 chama atenção também pela quantidade de vezes em que foi reajustado. Apenas entre março de 2015 e março de 2016, foram cinco reajustes, o que é proibido pelo próprio acordo, que prevê mudanças no valor apenas nos momentos de renovação do convênio. Além disso, o contrato também limita a renovação em cinco anos, mas ele de fato foi renovado por seis, de 2013 a 2019. A renovação de contratos automaticamante por tanto tempo acaba sendo também um jeitinho de driblar a concorrência. “A empresa oferece um valor baixo e ganha a licitação para um ano, já sabendo que esse preço será reajustado várias vezes”, alerta o diretor-executivo da Transparência Brasil, Manoel Galdino.

Em junho, a empresa de Mattos ganhou mais uma licitação, que lhe garantiu o seu maior contrato até agora. Ela fornecerá comida por um ano para até quase 19 mil dos cerca de 23 mil presos no estado e 2 mil servidores por cerca de R$ 100 milhões.

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Penitenciárias fechadas, lucro garantido

Assim que tomou posse para o segundo mandato, uma das principais medidas do petista Camilo Santana, reeleito governador em 2018, foi a nomeação do policial civil Luís Mauro Albuquerque como secretário de Administração Penitenciária. Antes de chegar ao Ceará, ele liderou uma força-tarefa no presídio de Alcaçuz, no Rio Grande do Norte, após um massacre que deixou 27 mortos em uma disputa de facções.

Logo que assumiu o cargo, o novo secretário deu início a uma reestruturação no sistema penitenciário cearense. A ideia, em tese, era  diminuir o poder das facções e a quantidade de presos no interior. A maior parte dos 23 mil detentos do estado (82%) foi centralizada em unidades prisionais na região metropolitana de Fortaleza. Em maio de 2019, após concluído o processo de reestruturação, 98 cadeias do estado deixaram de existir. 

Mais uma vez, a empresa de Mattos foi uma das principais beneficiadas. 

Em um dos contratos da sua empresa com o estado, por exemplo, a previsão era fornecer alimentos para 850 detentos de cinco cadeias públicas além da Casa de Albergado de Sobral. Das seis unidades que constavam no contrato, porém, restou apenas – a Unidade Prisional de Sobral, que, em abril, tinha 105 detentas. 

Procurei a Secretaria de Administração Penitenciária, que me disse que o valor desse contrato foi “reduzido em 45,55%”. Porém não há qualquer informação no aditivo do contrato assinado em sua renovação, em 2019, sobre quanto a empresária Mattos está realmente ganhando ao fornecer comida para um número oito vezes menor de detentos. 

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