segunda-feira, 8 de junho de 2020

JULGADAS SEM JULGAMENTO Juízes criam exceções imaginárias para impedir que mães presas sem condenação voltem para casa

                                                                              Justiça Ilegal
Argumentos machistas de juízes transformam até horário de supostos crimes em justificativa para descumprir a lei e negar prisão domiciliar a essas mulheres.

ACUSADA FOI PRESA em flagrante, em plena sexta feira (sic), por volta das 8h30 da manhã, pela suposta prática de crime de tráfico de entorpecentes, demonstrando que não se trata de pessoa de caráter exemplar e colocá-la em contato com seus filhos implicaria expor as crianças a situação de risco e ao meio criminoso”, escreveu o juiz Alexandre Levy Perrucci, do Fórum de Pindamonhangaba, em São Paulo, ao julgar o pedido de habeas corpus de Lucília Casares da Cunha Oliveira.

No mês anterior, fevereiro de 2018, o Supremo Tribunal Federal havia expedido um habeas corpus coletivo para que todas as grávidas e mães de crianças até 12 anos que aguardam julgamento por crimes sem violência cumprissem prisão provisória domiciliar ou aberta. Era o caso de Lucília, que estava presa desde janeiro daquele ano, mas ela foi impedida de sair da prisão por Perrucci.


 

Também acusada de crimes sem violência relacionados a drogas, Cícera Angelita Marta Felix da Silva, de Itapecerica da Serra, São Paulo, passou pelo mesmo problema: teve sua progressão de pena negada pela juíza Alena Cotrim Bizzarro. Silva alegou ser a única responsável pelo cuidado dos filhos pequenos, mas Bizzarro – que ostenta um salário acima do teto – achou mais relevante para sua decisão o fato de a moça ocasionalmente sair aos finais de semana: “para tais atividades tem condições de deixar os filhos sob os cuidados de terceiros”, escreveu.

Ao contrário do que fazem parecer as decisões de Perucci e Bizzarro, juízes não deveriam recusar a prisão domiciliar para mulheres como Lucília e Cícera, que atendem aos requisitos do habeas corpus do STF, usando a suspeita de tráfico de drogas ou saídas no fim de semana. A decisão do Supremo afirma, de fato, que, em casos excepcionais, como as de crimes violentos ou grave ameaça, a progressão de regime pode ser negada. Mas o tráfico não é um deles.

“A concepção de que a mãe que trafica põe sua prole em risco e, por este motivo, não é digna da prisão domiciliar, não encontra amparo legal”, escreveu o ministro do STF Ricardo Lewandowski, responsável por conceder o habeas corpus que deveria garantir prisão domiciliar às mulheres. “Não há razões para suspeitar que a mãe que trafica é indiferente ou irresponsável para o exercício da guarda dos filhos, nem para, por meio desta presunção, deixar de efetivar direitos garantidos na legislação”.

Nenhuma lei determina que tipo de mãe pode ou não ficar com os filhos – a não ser que o processo trate disso ou haja alguma prova de maus tratos, o que não constava nos autos dos casos a que tivemos acesso.

Nessas decisões, em vez das provas pesaram a vida pessoal da mulher e sua suposta capacidade como mãe. É um tratamento raramente dado aos presos do sexo masculino, como ressalta a advogada Marisâmia de Castro Inácio, de Rondônia, que atende muitas mulheres nessa situação. “Alguns juízes negam o habeas corpus alegando que a mãe seria uma péssima influência para os filhos, mas nunca vi esse tipo de comentário ser feito com homens que cometeram o mesmo crime. É como se o homem não fizesse parte do núcleo familiar. Esse aspecto de ele ser má influência como pai nem chega a ser cogitado”, afirma.

          Exceções imaginárias

Nos deparamos com várias decisões machistas desde que começamos a pesquisar o motivo pelo qual há mais de 3 mil mulheres presas ilegalmente no Brasil hoje. Para os juízes que as assinaram, as acusadas respondem não apenas pelo delito, mas também por não corresponderem ao ideal de conduta que se espera de mães.

É o caso de Ana Lúcia da Costa.

Na decisão que a impediu de deixar a prisão, o juiz Paulo César Ribeiro Meireles, do Fórum de Guaratinguetá, em São Paulo, reconhece que mulheres podem “vir a ser obrigadas por companheiros ou outrem do crime organizado”. Mas isso, para eles, decorre de outro desvio moral, pois elas agiriam “na certeza da irresponsabilidade imediata, experimentando-se um aumento, óbvio, de aliciadas ao crime”. Para eles, era melhor que ela fosse mantida longe dos filhos, porque eles não estariam sendo bem cuidados por “tal exemplo de pessoa”.

A decisão foi proferida em 13 de março de 2018, menos de um mês após o habeas corpus do Supremo. Mas os juízes não podem alegar desconhecimento: eles citam a decisão de Lewandowski no texto. Alegam, porém, que “é possível que muitas presas façam questão de engravidar (ou obriguem soltas para o aliciamento) justamente para poderem assim alegar [o direito à prisão domiciliar]”.

O juiz chegou a anexar uma foto que costumava circular pela internet para exemplificar o malefício das drogas. Há ao menos outros dois casos em que ele utiliza o mesmo exemplo. A imagem não só não pode ser usada para reforçar sua decisão, já que crimes relacionadas a drogas não constituem exceções ao direito ao habeas corpus, como não tem nada a ver com Ana Lúcia. É de um caso dos Estados Unidos, mas Meireles achou que inserir a informação “ilustrativamente” seria mais um argumento para manter a mulher presa.

Caso de presa nos EUA usado como exemplo do “malefício das drogas” pelo juiz Paulo César Ribeiro Meireles ao julgar o pedido de habeas corpus de Ana Lúcia.

O texto do juiz ainda “arrisca a dizer” (expressão dele) que seria melhor que os filhos de Ana Lúcia fossem adotados para se tornarem “cidadãos produtivos num futuro próximo e [de] uma Nação livre e empreendedora com os valores maiores da honestidade, do trabalho lícito e construtivo”. Ele tratou o crime de tráfico como razão para negar a progressão de pena, o que é ilegal, e ainda apresentou um argumento moral, e não jurídico, para tomar sua decisão.

Mulheres como Ana Lúcia, que poderiam ter ido para casa com o habeas corpus do Supremo, são, em sua maioria, negras, pobres e com baixa escolaridade. Cerca de 60% estão presas por crimes relacionados ao tráfico de drogas – circunstância em que muitas vezes são colocadas para ajudar o parceiro, geralmente exercendo funções coadjuvantes.

Na ocasião em que foi presa, em 31 de janeiro de 2018, Ana Lúcia estava com o marido e os filhos quando foram abordados por policiais. O marido correu e, segundo os policiais, descartou uma sacola com pinos de cocaína e crack. Ana Lúcia ficou nervosa e mandou os policiais “tomarem no cu”. Ela só foi condenada, por tráfico e desacato, em 20 de agosto do mesmo ano. Até ali, já havia ficado presa indevidamente, sem ter passado por um julgamento, por exatos seis meses.

O que nos leva a outro ponto do habeas corpus coletivo do STF: a condenação antecipada. A decisão do Supremo determina que os juízes liberem as mulheres que se encaixam nos pré-requisitos dela sem que seja preciso esperar por um pedido da defesa. O mais comum, no entanto, é que os advogados e defensores tenham que entrar com pedidos de progressão de pena, quando se solicita que a presa seja beneficiada com um regime punitivo mais brando, como a prisão domiciliar. Na experiência da advogada Marisâmia Inácio, as solicitações costumam ser negadas e somente revertidas numa instância superior – geralmente, no Superior Tribunal de Justiça, em Brasília. Nesse meio tempo, meses se passam, e o destino dos filhos e do núcleo familiar se torna incerto.

O próprio texto do artigo 318 do Código de Processo Penal, que detalha os casos de prisão preventiva, traz embutida uma condenação sem julgamento com o uso do verbo no particípio passado: “tenha cometido”.

A prisão preventiva imposta à mulher gestante ou que for mãe ou responsável por crianças ou pessoas com deficiência será substituída por prisão domiciliar, desde que:

I – não tenha cometido crime com violência ou grave ameaça a pessoa;

II – não tenha cometido o crime contra seu filho ou dependente.

“É uma condenação prévia já no texto da lei”, diz a advogada criminalista Fernanda Osório, professora de Direito Criminal da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, a PUC-RS.


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