FOI NUMA NOITE em mil novecentos noventa e quatro e lá-se-vão-vinte-e-seis-anos que descobri que tinha sido criado num regime totalitário. O adolescente secundarista miseravelmente solitário havia entrado numa igreja pentecostal. Era um nômade, não tinha uma congregação para chamar de sua. A fé a cada dia mais perto de descarrilar, os valores dos crentes me soando cada dia mais alienígenas.
Não era alienígena a palavra que estava procurando. Foi a que encontrei naquele dia.
Do púlpito, o pastor, um homem firmemente na média de classe média, criatura de apartamento, mesmos trejeitos e mesma medida de carisma de um gerente de concessionária de carros.
Convido a Igreja a Abrir a Palavra do Senhor em Romanos, capítulo 13.
1. Todos devem sujeitar-se às autoridades governamentais, pois não há autoridade que não venha de Deus; as autoridades que existem foram por ele estabelecidas.
2. Portanto, aquele que se rebela contra a autoridade está se colocando contra o que Deus instituiu, e aqueles que assim procedem trazem condenação sobre si mesmos.
3. Pois os governantes não devem ser temidos, a não ser pelos que praticam o mal. Você quer viver livre do medo da autoridade? Pratique o bem, e ela o enaltecerá.
A igreja na qual congregava naquele dia havia sido uma escolha aleatória. Havia visto no caminho para o estágio, do ônibus. Descera do ponto e lá estava. Era uma igreja em um bairro remediado. Uma “comunidade”, como era moda então batizar igrejas pentecostais novas em Curitiba. Igreja de crentes que não se vestem para parecer crentes. Calça, camiseta, maquiagem, salto, banda com guitarra elétrica e bateria. Do tipo que quem está fora costuma relacionar com atitudes mais arejadas, menos fanáticas. Do tipo de seu colega de trabalho que faz piada com tudo, só não aparece no happy hour e costumava não gostar de falar de política até 2018.
Deus escolhe tudo neste mundo, não há folha que caia de uma árvore sem a permissão de Deus. Toda a autoridade emana de Deus e é escolhida por ele. E isso não é só o governo: é o trabalho, é dentro de casa. Filhos obedecem à mãe, a mãe ao pai, o pai ao chefe, o chefe ao patrão, o patrão ao presidente.
Eu não sabia naquela época, mas a história da folha caindo da árvore não é bíblica. É uma citação do Corão, 6ª Surata versículo 59. Imagino que muitos dos pastores que repetem a frase até hoje não a fariam se soubessem da origem.
Jesus vivia sob o Império Romano. A maioria dos judeus então se revoltava e tentava até mesmo assassinar os invasores – e eles seriam castigados por Deus perdendo seu país. Revoltar não é o que ensinou Nosso Senhor. Jesus disse: “a César, o que é de César, a Deus, o que é de Deus”. Pois a autoridade na Terra é também a autoridade dos céus. Deus havia colocado César para controlar Israel, e quem enfrentou Roma não fez como Deus queria. O cristão que realmente entrega sua vida nas mãos do Senhor aceita sua vontade.
Era mais uma tentativa de se reconciliar com a fé em que havia sido criado. Saltava de igreja em igreja – deviam ter sido umas sete nos últimos dois anos. Eu ia um dia, tentava frequentar, mas me desencantava na segunda ou terceira visita. Inevitavelmente, começava a perceber que havia algo de errado com as pessoas, algo que eu não conseguia apontar exatamente. Uma espécie de uncanny valley da personalidade – como máquinas que imitam humanos se tornam mais repulsivas quanto mais parecidas são, aqueles crentes tão integrados, tão de classe média, estavam a um milímetro de soarem naturais, mas uma coisa escapava, traía, como a esquisitice perturbadora de um robô. Isso estava também em meus parentes, mas esses eu conhecia desde sempre, em suas falhas, sua hipocrisia. Em desconhecidos, era repulsivo. Aos 16 anos, eu era crente, mas não queria mais saber de crente.
E a paz está em aceitar Seu plano. Crianças obedecem à mãe, a mãe ao pai, o pai ao chefe, o chefe ao patrão, o patrão ao presidente. Não cabe ao cristão contestar a hierarquia que Deus terminou. Se todos aceitam seu lugar, há felicidade na Terra. Amém?
Não disse amém. Saí do banco, fui para fora da igreja. Com a luz e o barulho saindo da janela, fiquei pensando no que aquilo significava. Por que aquilo me incomodava. Por que havia feito eu me levantar. E o que não havia mais como negar é que era uma fé política. Antidemocrática. Totalitária. “Esse pastor é um fascista”, pensei. “Todos são.” Nesse dia, dei as costas para a igreja. Enfiei as mãos no bolsos e andei.
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