
A ABIN, Agência Brasileira de Inteligência, quer colocar as mãos em dados e fotografias dos mais de 76 milhões de cidadãos que possuem uma carteira nacional de habilitação, a CNH. O Intercept teve acesso a documentos de pessoas envolvidas na negociação que mostram que a Abin pediu ao Serpro, empresa pública de processamento de dados, um banco de informações colossal. Os dados incluem nomes, filiação, endereços, telefones, dados dos veículos e fotos de todo portador da CNH.
Segundo o material, havia em novembro passado mais de 76 milhões de carteiras no país (o equivalente a 36% da população), e 1,5 milhão de novos documentos são emitidos todo mês. Por esse motivo, a agência exige que os dados sejam atualizados mensalmente.
A Abin existe para municiar o presidente da República com “informações nos assuntos de interesse nacional”, de acordo com seu estatuto. Ou seja: vasculhar dados das CNHs de milhões de brasileiros não é papel da Abin. Dois ex-ministros de correntes políticas distintas com quem conversamos consideram o pedido “coisa de regime autoritário”.
Os documentos, datados entre os últimos meses e entregues ao Intercept por uma fonte anônima, detalham as informações requisitadas pela agência de espionagem: nome, filiação, CPF, endereço, telefones, foto, dados dos veículos (inclusive com nomes de proprietários anteriores, situação e procedência) de cada cidadão habilitado a dirigir.
O Intercept decidiu não publicar os documentos e ocultar detalhes do conteúdo para proteger a fonte.
Os dados serão extraídos de um sistema conhecido por Renach, o Banco de Imagens do Registro Nacional de Condutores Habilitados, que é de responsabilidade do Denatran, o Departamento Nacional de Trânsito. Ao lado do CPF, a CNH é o único documento de identificação de cidadãos armazenado nacionalmente – com a vantagem de trazer a foto do portador. A carteira de identidade, por exemplo, é emitida pelos estados, com dados que se repetem – e uma mesma pessoa pode obter o documento em mais de um estado.
Os funcionários envolvidos na transação entre os dois órgãos estimam que, no primeiro mês, mais de 75 milhões de registros seriam enviados para a agência de espionagem. Depois, mensalmente, a base seria atualizada com mais 1,5 milhão de registros. O projeto começaria em maio de 2020 e teria a duração de um ano, a um custo de pouco mais de R$ 330 mil. No Serpro, o projeto recebeu um código interno específico: 11797 (Abin – Extração Denatran).
O Serpro é a empresa pública responsável por gerir sistemas e informações. É relativamente comum que outros órgãos governamentais encomendem dados a ele. Em 2018, o Serpro tinha 21 contratos para compartilhamento de arquivos com outras instituições públicas. Mas, justamente por sua natureza, a Abin não faz parte do rol habitual de clientes, de acordo com uma fonte que pediu para não ser identificada por temer represálias.
Solicitamos à Abin uma explicação. A agência não negou a transação. “A obtenção, a integração e o compartilhamento de bases de dados são essenciais para o funcionamento da atividade de inteligência”, justificou o órgão. A resposta foi enviada pela assessoria do Gabinete de Segurança Institucional, o GSI, a quem a Abin é subordinada. “O compartilhamento de dados obedece a decreto 10.046/2019 sobre a governança no compartilhamento de dados no âmbito da administração pública federal e estabelece as normas e as diretrizes para o compartilhamento de dados, de forma legal, entre os órgãos e as entidades da administração pública federal”, argumentou o GSI.
‘Acende a luz amarela, no mínimo’.
O decreto citado, porém, não menciona atividades de inteligência. Em vez disso, o documento autoriza o compartilhamento para “simplificar a oferta de serviços públicos; orientar e otimizar a formulação, a implementação, a avaliação e o monitoramento de políticas públicas; possibilitar a análise das condições de acesso e manutenção de benefícios sociais e fiscais; promover a melhoria da qualidade e da fidedignidade dos dados custodiados pela administração pública federal; e aumentar a qualidade e a eficiência das operações internas da administração pública federal”. É difícil enxergar onde esteja autorizado o uso deles para fins de espionagem. Perguntamos isso ao GSI – e ficamos sem resposta.
Já o Serpro afirmou que, “por força da lei e dos contratos firmados”, não pode se manifestar sobre serviços e demandas dos clientes. Também disse que observa a Lei Geral de Proteção de Dados, “cuja estrita observância em nenhuma medida atenta contra o sigilo de dados de quem quer que seja”. Só que a lei ainda não está em vigor.
Também questionamos o Denatran sobre o descaso com a privacidade dos brasileiros que possuem CNH. O órgão, subordinado ao Ministério da Infraestrutura, comandado por Tarcísio Gomes de Freitas, sequer respondeu à consulta feita por e-mail.
“Esse caso, pelo volume de informações, chama atenção. Eu me pergunto qual é o interesse estratégico para inteligência nacional você fazer vigilância massiva”, questiona o advogado Danilo Doneda, doutor em Direito Civil e membro indicado pela Câmara dos Deputados para o Conselho Nacional de Proteção de Dados e Privacidade. “O que chama a atenção agora é que é um momento de politização exacerbada dos órgãos de estado. Há um receio latente de informações pessoais sendo usadas para fins não republicanos. Acende a luz amarela, no mínimo”.
Para o advogado, o esquema montado pela Abin remete ao escândalo de espionagem da NSA, a agência de segurança digital dos EUA, que usou um sistema massivo de vigilância para fins obscuros e, muitas vezes, privados. O caso foi revelado pelo analista de segurança Edward Snowden.
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