NA VIRADA DO MILÊNIO, tendo a Índia como inspiração, o economista indiano e prêmio Nobel Amartya Sen escreveu um artigo no prestigioso Journal of Democracy sobre como a democracia se tornava um valor universal. Era uma fase de otimismo, quando economias emergentes despontavam como grandes promessas democráticas.
Para Sen, junto com o consistente crescimento econômico, a Índia estava sabendo tratar as diferenças políticas dentro dos parâmetros constitucionais, e os pleitos eleitorais garantiam a alternância de poder. O país superava o enorme desafio de lidar com sua diversidade de linguagens e religiões. O problema da exploração da fé por políticos sectários estava sendo contornado. Mas Amartya Sen alertava que a prosperidade do país dependia da estabilidade religiosa – além de hindus, a Índia tem a terceira maior população islâmica do mundo, além de cristãos, budistas, siques, parsis e jainistas. Touché.
Em 20 anos, o cenário mudou radicalmente. A Índia, assim como o Brasil, foi “da esperança ao ódio” em queda livre. Passou de grande potência democrática a um regime autoritário, que proíbe manifestações e persegue a imprensa livre – a imprensa é chamada de “presstitute”. O mesmo Journal of Democracy agora traz um artigo argumentando que, ainda que o país mantenha eleições regulares, todo o restante que constituiria uma “democracia liberal” se esvaeceu, como a garantia da liberdade ao debate e o funcionamento equilibrado das instituições. A professora Nikita Sud, da Universidade de Oxford, vai mais longe e diz que os fatos recentes questionam o status democrático e acenam ao autoritarismo.
Vozes que contestam o regime do primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, são chamadas de traidoras, inimigas da nação, anti-Índia. Mais grave ainda é o estado legitimar massacres de turbas nacionalistas contra minorias religiosas, especialmente muçulmanas. Em 72 anos de independência, o país vive uma de suas mais profundas crises. Só nos últimos dias, foram mais de 40 mortos e milhares de feridos.
Em recente entrevista para a revista New Yorker, o próprio Sen realiza uma jornada autorreflexiva sobre as transformações da Índia e o que teria dado errado. Consternado, ele comenta que hoje a maioria de seus amigos tem medo de se comunicar pelas redes sociais por serem vigiados. Ainda sem respostas fechadas sobre a crise democrática, ele acredita ter subestimado a importância da secularização nas democracias.
Em uma reportagem do Guardian sobre como supremacistas hindus estão dividindo a Índia, a cientista política Niraja Jayal afirma que, como seria impossível expulsar milhões de pessoas do país, o governo agora tenta consolidar o papel de subordinação dos muçulmanos. Essa unificação imposta de cima para baixo não entrega o desenvolvimento econômico almejado por todos, mas responde ao ideal de uma comunidade hindu pura, limpa e paternal. O que está em jogo nessa arbitrariedade, em última instância, é o desejo de decidir quem pode e quem não pode ser indiano.
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