quinta-feira, 2 de setembro de 2021

ASSÉDIOS SACROS


Por trás dos cantos gregorianos que enaltecem os monges beneditinos do rico Mosteiro de São Bento, localizado no coração de São Paulo, se escondem denúncias de assédios e abusos sexuais, humilhações e perseguições a jovens seminaristas. Dois deles se uniram e, após terem deixado a instituição, denunciaram à polícia, em maio de 2019, quatro pessoas do mosteiro pelos abusos sofridos.


Ao longo de um ano e meio de apuração, o Intercept contatou as vítimas, falou com advogados, procuradores e testemunhas e localizou outras três pessoas que também teriam sofrido abusos no mosteiro quando eram menores de idade, mas que preferiram não se manifestar.


O inquérito, ao qual tivemos acesso, resultou em uma denúncia do Ministério Público de São Paulo apresentada em junho de 2020 e apreciada pela justiça em abril. Entre os acusados estão dois noviços e dois monges do mosteiro. Um deles é João Baptista Barbosa Neto, um monge “pop” e instagramer conhecido na igreja como Dom João Baptista, autor de diversos livros em vendas em livrarias católicas, entre eles, “Cozinhe com os monges: as tradicionais receitas do Mosteiro de São Bento” e “As peripécias de Jennifer”.

 Também conversamos com três monges do mosteiro sob a condição de anonimato. Segundo os religiosos, o então abade Mathias Tolentino Braga, conhecido como Dom Mathias, teria sido informado sobre os abusos, mas preferiu acobertá-los. À época das situações descritas pelos ex-seminaristas, ele era o principal responsável pela instituição. Desde 2019, um decreto assinado pelo Papa Francisco como uma resposta aos constantes escândalos de abusos na Igreja Católica obriga padres e religiosos a denunciarem às autoridades eclesiásticas qualquer suspeita de crimes sexuais.

Em primeira instância, a justiça impediu o prosseguimento da ação sem analisar o mérito do caso por considerar que houve “decadência”. Ou seja, havia expirado o prazo legal para que as vítimas comunicassem os fatos às autoridades. Mas, como os abusos teriam acontecido quando as vítimas eram menores de idade, o MP diz que essa interpretação não se aplica. Os promotores recorreram e aguardam decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo.

“Pop” e instagramer, o monge Dom João Baptista é sucesso de vendas nas livrarias católicas do país.

 

Fotos: Reprodução

 O início do fim

E

m fevereiro de 2020, dias antes que começasse a pandemia do coronavírus no Brasil, Rodrigo, hoje com 22 anos, recebeu a reportagem do Intercept acompanhado pelos pais no pequeno apartamento onde mora, no centro de São Paulo. Os fatos narrados por ele fazem parte da denúncia criminal do MP e teriam acontecido entre os anos de 2016 e 2018 – enquanto ele trabalhava na biblioteca e estudava filosofia na Faculdade São Bento, ligada ao mosteiro.

“Para um garoto pobre, de família simples, a religião às vezes te faz sentir muito especial”. É assim que Rodrigo começou a falar da relação que nutria pelo catolicismo antes de tomar uma das decisões mais importantes de sua vida: estudar no Mosteiro de São Bento para tornar-se monge e dedicar sua vida à tradição “ora e trabalha” (do latim ora et labora), dos religiosos que tanto admirava.

Ele conta que tinha 16 anos quando se matriculou no curso gratuito de canto gregoriano oferecido pelo mosteiro e começou a frequentar o local.  Seu interesse pelas artes o levou a visitar, nos intervalos das aulas, as alas da instituição repletas de obras de arte restauradas. Foi nessa época que ele relata ter sofrido o primeiro assédio sexual. A investida teria partido de Rafael Bartoletti, que no mosteiro é chamado pelo seu nome religioso, Irmão Hugo, um dos quatro denunciados pelo MP. Hugo também aparece como algoz dos assédios sexuais sofridos pelo jovem Felipe, cuja história contaremos mais adiante.

“O Hugo era quem me guiava nessas visitas às dependências do mosteiro. Um dia, ele me levou à sala de música, entrei e fiquei olhando as pinturas. Ele trancou a porta, veio na minha direção e me empurrou para baixo, com a mão nos meus ombros. Nesse momento eu levantei e ameacei contar pro monge que era mestre de noviços na época. Foi a primeira vez que ele me assediou”.  A sua primeira reação, contou, foi de susto e confusão, porém, com medo, resolveu não contar nada a ninguém.

‘Errado seria não satisfazer as próprias vontades carnais.’

Ainda tímido e constrangido pelo que acabara de revelar na presença dos pais, que até aquele momento não sabiam detalhes dos abusos sofridos pelo filho, Rodrigo precisou da ajuda da mãe para dar prosseguimento à entrevista. Foram quatro horas e meia de conversa, que gerou diversas crises de pânico no rapaz, que ainda vive à base de remédios controlados e acompanhamento psiquiátrico.

Quando terminou o ensino médio, Rodrigo recebeu uma bolsa de estudos para cursar filosofia na faculdade do mosteiro: ele iria trabalhar na biblioteca em troca da formação. E, segundo ele, os abusos continuaram durante esse período. Ao todo, ele passou quatro anos no São Bento. O jovem precisou pegar um papel e caneta para traçar uma linha do tempo e conseguir contar, em ordem cronológica, como e quando aconteceram os abusos que o levaram a duas tentativas de suicídio – uma, inclusive, dentro do próprio mosteiro.

Com mais de 400 de idade, o Mosteiro de São Bento fica no coração de São Paulo, próximo a praça da Sé.

 

Foto: Rubens Chaves/Folhapress

Assédios sexuais na ordem do dia

O

instagrammer Dom João Baptista era o monge responsável pela biblioteca na época em que Rodrigo trabalhava no local. O jovem conta que, quando o questionava sobre o comportamento inadequado de alguns seminaristas e religiosos, ele afirmava que o errado era não satisfazer as próprias vontades carnais.

“Na biblioteca, ele tinha a mania de fazer brincadeiras [de cunho sexual]. Quando chegava, sempre me dava um tapinha [na bunda] ou então me abraçava por trás, essas coisas”. Rodrigo relata que, por diversas vezes, disse a Dom João que não gostava de ser tratado daquela maneira, e o monge dizia que tudo não passava de brincadeiras e que não se tratava de assédio. Segundo Rodrigo, Dom João Baptista também se comportava dessa forma com outros meninos da faculdade.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Mulher morre e 44 pessoas ficam feridas após ônibus tombar na BR-040, em Minas

 Um acidente envolvendo um ônibus de turismo deixou uma pessoa morta e outras 44 feridas em Minas Gerais na madrugada deste domingo (10). O ...