sexta-feira, 30 de outubro de 2020

Vozes ‘Foi no Brasil que me senti negro pela primeira vez’: como aprendi a manipular minha identidade

DE ONDE VOCÊ É? Essa é a pergunta mais frequente que me fazem desde que cheguei ao Brasil em 2008. Da minha parte, a resposta a essa pergunta sempre foi negociada. Sou de vários lugares ao mesmo tempo, minha identidade é fragmentada e híbrida, embora não esteja marcada na minha pele.


Sou filho de um casal congolês que migrou para a França nos anos 1980 com sua filha pequena. Logo tiveram outros três filhos, todos nascidos na cidade de Bordeaux. Meus pais são originários do Kivu, província do leste do Congo, antigo Zaire e Congo Belga. Meu pai nasceu em Nyangezi, no Kivu do Sul; e minha mãe nasceu na ilha de Idjwi, no Kivu do Norte. A etnia do meu pai é Shi e da minha mãe é Havu. Sou capaz de fazer esse exercício genealógico até a geração dos meus avós de ambos os lados e isso me basta para determinar exatamente de onde venho.


Mas, olhando com certo distanciamento, penso que talvez nunca tenha me interessado em ir além dessas duas gerações, porque o acesso que tive da história dos meus ancestrais se deu pela tradição oral. Havia esse conhecimento dos locais de pertencimento, mas a comunicação das histórias dos meus antepassados se deu pela oralidade. E talvez isso tenha limitado meu interesse por conhecer algo anterior aos meus avós.


Meu avô materno, por exemplo, era um político relativamente importante no Congo. Ele tinha também uma espécie de autoridade tradicional na sua região natal. Nunca entendi muito bem esse aspecto da vida dele, que me parecia mais uma mística do que algo concreto. Quando se aposentou, decidiu voltar à ilha de Idjwi para descansar e terminar sua vida ali. Lembro perfeitamente dele se reunir comigo e com meus dois irmãos e escrever nossos nomes em seu testamento, no qual deixava parte de suas terras a cada um dos filhos e netos. Para ele, era importante que nós tivéssemos um vínculo com aquele lugar. Ele desejava que, mais tarde, um de nós construísse uma casa lá. Esse vínculo com a terra pode não significar muita coisa para a maioria das pessoas. Mas, para meu avô, representava nossa identidade também.


Paradoxalmente, minha trajetória de vida – e, sobretudo, minha trajetória intelectual – me vincula menos a essas regiões do que à França e ao Brasil. Muitas vezes, quando me perguntam de onde eu sou, costumo responder de maneira instintiva: “De João Pessoa.” Desenvolvi uma relação de pertencimento com essa cidade ao longo dos 12 anos em que vivo no Brasil. Me sinto mais em casa na Paraíba do que em qualquer outro lugar no mundo.


‘Um documento oficial tem o poder de neutralizar o preconceito que pode ser ativado pela cor da pele, ainda mais em aeroportos.’

Minha identidade sempre foi negociada, no sentido em que eu me acostumei a manipular essa informação de acordo com meus interlocutores, ao grau de intimidade e de confiança que crio com as pessoas. Mas aprendi aqui a fazer essa manipulação da minha identidade, porque foi no Brasil que me senti negro pela primeira vez.


Logo na minha primeira semana aqui, quando precisei ir ao banco para abrir uma conta, amigos africanos mais experientes me instruíram sobre o perigo de usar um boné, uma mochila ou uma bermuda. Aprendi rapidamente que eu seria julgado pela minha aparência e não somente pela cor da minha pele. Pela primeira vez, eu estava num país onde os códigos de vestimenta podem significar vida ou morte.


Em qualquer esfera da vida no Brasil, manipulamos nossa identidade para sobreviver. Ser africano pode apresentar certas vantagens em determinados momentos e lugares, porém existem situações e momentos em que é mais prudente que eu acentue meu pertencimento à França. Ainda hoje utilizo meu caderno de vacinação e minha certidão de nascimento da república francesa, sobretudo quando faço uma viagem internacional. Um documento oficial tem o poder de neutralizar o preconceito que pode ser ativado pela cor da pele, ainda mais em aeroportos e outros lugares similares onde os marcadores raciais e sociais são tão determinantes no tratamento que recebemos. Desde muito cedo, os negros aprendem a usar diferentes estratégias para superar as barreiras que uma sociedade racista coloca no seu percurso, seja na escola, no dia a dia, na universidade ou no mercado de trabalho.


                                                                       Sob o olhar do outro

A identidade, de modo geral, se constrói na dimensão da alteridade. Os países se definem em comparação com seus vizinhos. Os times de futebol se comparam com seus adversários em campo. Estilos e tradições artísticas demarcam sua individualidade em comparação com outras. É basicamente da mesma maneira que uma pessoa vem a se identificar como negra. Então, primeiro, isso ocorre através do olhar do outro. Segundo, através do lugar que lhe é atribuído em determinada sociedade. Um lugar, muitas vezes, onde a sociedade quer confiná-lo.


Há também outra dimensão da identidade que é tão importante quanto essa e, eu diria, serve como contraponto a essa perspectiva da alteridade: a autoimagem. A definição da sua identidade enquanto sujeito. Dizendo isso de modo vulgar, troca-se a pergunta “de onde você é?” por “quem sou eu?”. Ou melhor, trocando-se de perspectiva, as duas perguntas passam a ter o mesmo significado e almejam a mesma finalidade.


E é nesse ponto específico que a questão dos testes de DNA para determinar a ancestralidade negra dos afro-brasileiros ganha toda a sua importância – não apenas de maneira psicológica, mas política. Muitos questionam o ganho coletivo que esse tipo de iniciativa pode ter para o movimento negro como um todo. Ainda é difícil responder a essa pergunta, mas eu diria que, inicialmente, sua importância opera no nível individual do reconhecimento e que não podemos descartar que, ao longo dos anos, esse reconhecimento seja sentido coletivamente.

 

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