segunda-feira, 20 de abril de 2020

CORONAVÍRUS: SERVIÇOS DE SAÚDE CORTAM CONTRACEPTIVOS QUANDO MULHERES MAIS PRECISAM EVITAR GRAVIDEZ

“NO AUGE DO DESESPERO, pensei em arrancar o DIU sozinha”. Desde 2016, Lorena* usa o Dispositivo Intrauterino como principal método contraceptivo. Mas, em março deste ano, soube que ele havia se deslocado e precisava ser retirado. Marcou então uma consulta com a única médica de seu plano de saúde que faz o procedimento em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. O atendimento, porém, acabou desmarcado devido à pandemia do novo coronavírus.




Desde 8 de abril, todas as grávidas e mulheres no puerpério, período de 42 dias após o parto, são consideradas pelo Ministério da Saúde como um grupo de risco para a covid-19. Mas, embora evitar uma gestação tenha se tornado sinônimo de proteger a saúde das mulheres durante a pandemia, elas vêm enfrentando um obstáculo: a dificuldade de acesso a métodos e procedimentos contraceptivos no SUS durante a crise.

Repórteres da Gênero e Número e da Revista AzMina, em colaboração com o Intercept, entraram em contato com a Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo, cidade com mais infectados e mortos por coronavírus, para saber como anda o abastecimento de contraceptivos. Fomos informadas que “desde o último dia 23 de março foram suspensos temporariamente os procedimentos considerados não urgentes”.

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Em todo o município, laqueaduras e vasectomias estão sendo canceladas. E os demais serviços contraceptivos, hoje mais necessários do que em tempos comuns, entraram nessa leva nos hospitais Fernando Mauro P. Rocha e Dr. Mario Degni – contrariando a OMS, Organização Mundial da Saúde, que recomenda que o direito à contracepção deve ser respeitado “independentemente da epidemia da covid-19″. Já no Amparo Maternal e no BP Hospital Filantrópico, nunca foram oferecidos. Oito maternidades do município afirmaram seguir com os atendimentos. As quatro restantes não retornaram nossos contatos.

No Rio de Janeiro, capital do segundo estado mais afetado pelo coronavírus, a Secretaria Municipal de Saúde afirmou também ter cancelado as laqueaduras e vasectomias, mas negou a falta de DIU, pílula e camisinhas na rede, e garante que a inserção do dispositivo continua disponível. Porém, ao entrar em contato com as 12 maternidades municipais da cidade, descobrimos que a colocação do DIU já foi suspensa por tempo indeterminado em ao menos quatro. As outras oito maternidades não nos responderam. No Hospital Lourenço Jorge, localizado no bairro com mais casos de covid-19, a Barra da Tijuca, sequer é possível encontrar camisinhas ou pílulas anticoncepcionais.

Procurar uma emergência do SUS passou pela mente de Lorena após sua consulta ser desmarcada no final de março, mas o medo a impediu. Com asma, obesidade e diabetes, ela já faz parte de grupos de risco da covid-19. Desde então, sofre com a falta de informações sobre sua situação.

“Para piorar, meu convênio não tem emergência obstétrica e ginecológica em Porto Alegre. Só no município de Canoas. E ir lá durante o surto, sendo do grupo de risco, é inviável”, desabafou. “Até achar uma solução, sofro com cólicas e com a possibilidade de engravidar, já que o DIU deslocado não garante minha proteção”. No momento, ela e o marido têm que recorrer à camisinha, comprada em farmácias.

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A ginecologista e obstetra Melania Amorim, pós-doutora em saúde reprodutiva pela Unicamp e pela OMS, faz coro à organização: “Exigimos que o sistema de saúde continue a ofertar os métodos contraceptivos para todas as mulheres”, declarou. A médica trabalha na maternidade do Instituto de Saúde Elpídio de Almeida, o Isea, referência no atendimento de grávidas com suspeita ou casos confirmados de covid-19 em Campina Grande, na Paraíba – estado com maior taxa de mortalidade do vírus, o que talvez se deva ao baixo número de testes.

“Tenho recebido vários relatos de mulheres que procuram as unidades básicas de saúde e [descobrem que] não estão mais distribuindo métodos hormonais e camisinha”, contou. A médica ainda criticou duramente o desabastecimento: “Não adianta dizer para as mulheres não engravidarem, transferindo toda a responsabilidade para elas, e não oferecer orientações e métodos contraceptivos”.

Amorim destaca que o acesso à contracepção é direito de todas as pessoas que podem engravidar – mas que, no momento, é preciso priorizar quem está sem anticoncepcionais. “Quem já está usando contraceptivo e está bem adaptada, deve manter seu método, sem necessidade de buscar um serviço de saúde, para não sobrecarregar o sistema”.

Marcela*, moradora de Florianópolis, em Santa Catarina, estava há meses na fila de espera para colocação do DIU no SUS. Mas, próximo à consulta, recebeu a notícia de que o serviço estaria suspenso por tempo indeterminado. “Ainda lamentei no telefone e me disseram que não era hora de pensar nisso”, desabafou.

Em nota, o Ministério da Saúde pontuou que, mesmo durante a pandemia, os gestores devem se organizar para entregar métodos contraceptivos. Mas que, nos casos de procedimentos considerados eletivos, como a inserção do DIU, os gestores locais têm optado por adiar atendimentos. A decisão contraria uma portaria do próprio Ministério, que define que o DIU de cobre deve ser disponibilizado pelos estados, Distrito Federal e municípios às maternidades integrantes do SUS.

Foi o que fez o Centro de Saúde Ratones, em Florianópolis, para onde ela havia sido encaminhada para a colocação do DIU. Lá, o serviço de colocação de inserção do dispositivo foi suspenso devido à epidemia, mas ainda há camisinhas e pílulas, segundo o Centro. Com medo de engravidar, Marcela tem recorrido à camisinha, mas nas farmácias. “Meu marido e eu temos empresas e ambas estão sem poder funcionar por ordem municipal. Estamos sem rendimentos. Uma gravidez agora seria uma tragédia”, disse.

O DIU, como mencionado, é considerado o método contraceptivo mais eficaz disponível no SUS – as chances de engravidar com o dispositivo são pelo menos 10 vezes menores do que com a pílula e 20 vezes do que com a camisinha. Porém, ele ainda não é oferecido em todas as capitais. Reportagem publicada na Gênero e Número revelou que apenas nove ofertam todos os métodos contraceptivos que constam na Relação Nacional de Medicamentos Essenciais, determinada pelo Ministério da Saúde. E nove não fornecem ou inserem DIU nos serviços de atenção básica à saúde, segundo dados do IBGE.

Mesmo o fornecimento de camisinhas pode diminuir. A ONU fez um alerta para os riscos da falta de preservativos em todo o mundo durante a pandemia. O desabastecimento pode acontecer por causa da paralisação de fábricas e de circuitos de distribuição durante a pandemia, paralela ao aumento da demanda.

Como Amorim, Carolina Sales Vieira, ginecologista e professora da Faculdade de Medicina da USP, a Universidade de São Paulo, demonstrou preocupação com o impacto da pandemia sobre os direitos reprodutivos. “Muitos médicos, políticos e pessoas que trabalham com planejamento em saúde não sabem quais são os serviços de saúde reprodutiva essenciais. E há três que não podem cessar: pré-natal, contracepção e aborto legal”, ressaltou. A médica destacou que a continuidade desses serviços é uma medida que salva vidas, sobretudo em um contexto de caos na saúde, já que a suspensão pode ter como consequência o aumento da mortalidade materna.

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