EM UMA PROFISSÃO com alto nível de estresse e exigência de tomadas de decisões permanentes sobre a vida de outras pessoas, como a de policial militar, o exame psicológico é uma etapa crucial do processo seletivo para recrutar bons soldados. Mas, pelo menos no estado de São Paulo, ser reprovado no teste psicológico não impede o candidato de um dia vestir a farda cinza da corporação.
Enquanto alguns esperam um novo exame, se preparam melhor e tentam mais uma vez, outros procuram ganhar a vaga no grito – com a ajuda do Judiciário. Um levantamento inédito do Intercept descobriu que, só em 2020, 32 candidatos conseguiram entrar na polícia militar mesmo tendo sido reprovados no teste psicológico.
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Vasculhando processos com a ajuda de policiais militares, encontramos dezenas de ações administrativas abertas por candidatos reprovados nos exames psicológicos. O caminho utilizado é quase sempre o mesmo: o concorrente fracassa no teste psicológico e, logo, pede uma liminar para voltar ao certame. Acusa a Polícia Militar do Estado de São Paulo, a PMESP de “subjetividade” no resultado final ou diz que essa etapa do teste psicológico não deve ser de caráter eliminatório. Caso o juiz de primeira instância não conceda a liminar, os candidatos entram com um recurso na segunda instância, na qual um tribunal analisará o caso.
Todo o processo é fartamente propagandeado. Há diversos canais no YouTube de cursos preparatórios para a prova da PM paulista que ensinam os reprovados a entrarem com esse tipo de ação judicial.
O ‘jeitinho’ é aplicado nos exames da PMESP que recrutam os chamados “praças” – soldados e policiais de patentes baixas. Esse concurso é diferente do realizado pela Academia do Barro Branco, que seleciona os oficiais. Em ambos, os candidatos devem ser aprovados em seis fases para entrar na corporação: prova escrita, prova de condicionamento físico, exame médico, teste psicológico, investigação social (em que o candidato tem sua vida pessoal e conduta investigadas pela PM) e a análise da documentação pessoal.
A maioria desses testes são de caráter eliminatório. Assim, se o candidato for reprovado em um deles, automaticamente está desligado do processo seletivo. É o caso do teste psicológico, em que o concorrente passa por duas fases: uma coletiva, em que outros candidatos participam de uma roda de análise, e outra individual, em que um psicólogo entrevista o candidato sozinho.
Controle emocional, relacionamento interpessoal, liderança e flexibilidade de conduta são algumas das características exigidas dos candidatos, segundo apontam os cursos preparatórios para a PMESP. Instabilidade, descontrole emocional ou outros problemas psicológicos derrubam muitos nessa fase. Quando os avaliadores chegam a essas conclusões, os candidatos são considerados “inaptos” e reprovados.
2-155703879Foto: Yasuyoshi Chiba/AFP via Getty Images
Matou o namorado e entrou na PM
No dia 13 de novembro de 2017, o desembargador Ricardo Feitosa, do Tribunal de Justiça de São Paulo, deu aval para Jair Alves de Oliveira entrar na PM. Reprovado no teste psicológico, Oliveira havia seguido o passo-a-passo para garantir, por meio da justiça, sua vaga na corporação.
Nove dias depois, o Judiciário paulista publicou outra decisão sobre Oliveira. Dessa vez, contrária às expectativas dele. Os juízes Xavier de Souza e Maria Tereza do Amaral deram parecer favorável à prisão preventiva do soldado: ele era acusado de ter assassinado seu namorado a facadas em 2013. Os magistrados negaram o pedido de absolvição do réu, justificando que ele havia matado o companheiro “por motivo fútil, com emprego de meio cruel e mediante recurso que dificultou a defesa do ofendido”.
O Intercept obteve acesso à decisão, parte de um processo que corre sob sigilo. Em 2013, Jair e Nilton Alves de Oliveira Junior comemoraram um ano e meio de namoro. Eles moravam juntos em uma pensão no Brás, região central da cidade de São Paulo. Testemunhas descreveram que o relacionamento dos dois era conturbado e marcado por discussões e agressões por parte do soldado.
Uma das testemunhas relatou que, um dia antes de Nilton ser morto, se reuniu com ele em seu apartamento da vítima para assistir a um capítulo de uma novela. O soldado havia saído, e eles conversaram sobre o relacionamento do casal. Nilton teria esticado e cheirado uma carreira de cocaína em sua mesa de centro e dito estar “esgotado” do namoro, cogitando fugir para morar no interior paulista – longe de Jair.
No dia seguinte, 18 de maio de 2013, um vizinho encontrou o corpo de Nilton esfaqueado em cima de sua cama, às 5h30.
Outra testemunha relatou ter encontrado Jair semanas depois do crime, enquanto ele estava foragido. Ela relatou que o soldado da Polícia Militar disse ter matado Nilton “sem pensar, que não teve a intenção”.
Atualmente, Jair Alves de Oliveira ainda aparece como soldado da PM no portal da transparência do governo do estado de São Paulo, com remuneração total líquida mensal de R$ 8.617,79.
Questionada sobre a situação de Oliveira, a Secretaria de Segurança Pública, a SSP, disse que informações pessoais do soldado não podem ser divulgadas.
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