terça-feira, 9 de março de 2021

‘PAGAR ATÉ A MORTE’ Oficiais sabotam investigações e garantem impunidade em casos de tortura no Exército

 


NO INÍCIO DE 2018, um soldado do Exército foi atendido na unidade médica do quartel do Comando da 10ª Região Militar, em Fortaleza, com sinais de trauma psicológico e hematomas. Após seguidos episódios de delírio e crises de pânico, o recruta acabou dispensado. Uma sindicância foi aberta meses depois para investigar o caso ocorrido na capital do Ceará. Se pré-existisse algum transtorno psicológico, o soldado, que cumpria o alistamento obrigatório, poderia ter a baixa registrada como inaptidão ao serviço militar, o que livraria o quartel de se responsabilizar por potenciais sequelas e indenizações.


Conforme o relatório do caso a que o Intercept teve acesso, dois cabos e um soldado o xingaram de filho da puta enquanto o molhavam com água gelada durante um acampamento militar. O recruta relatou ter sido obrigado por outro militar a rolar em uma poça de lama usada como depósito de urina pelo batalhão. Havia também uma ordem expressa de lhe negar comida. Ao catar uma manga para matar a fome, teve a fruta retirada e foi obrigado a fingir que chupava uma pedra em seu lugar.

Fraco e humilhado, ele disse que não suportou e perdeu a consciência após uma tarefa na qual foi obrigado a rastejar mesmo tendo relatado estar se sentindo mal. Passou um mês internado com episódios de delírio e tentativa de suicídio. Ao sair do hospital, foi convocado a se apresentar de novo no quartel. Lá, teve um surto e foi contido a socos no rosto por cabos e soldados a mando dos comandantes do quartel. Caiu com olhos e boca inchados por hematomas. As ordens de tortura tinham anuência do comandante da 10º Região Militar à época, o major Fulgêncio Leitão de Castro e Silva Júnior.


O militar responsável pela sindicância atestou a tortura contra o soldado, motivada por homofobia. Havia uma ordem interna que orientava recrudescer os maus-tratos para que “esse viadinho pedisse logo para ir embora”. O comando teria dito que não queria homossexuais no seu quartel.


Mas o tenente e o major que chefiavam a assessoria jurídica do quartel não gostaram da conclusão do relatório. Queriam que o assunto fosse enterrado, e o recruta dispensado por doença pré-existente, como se o sofrimento psicológico do jovem, causado pela tortura, não tivesse tido origem no Exército. Deu certo: o recruta torturado foi exonerado sem direito a indenizações ou tratamento.


Mas o assédio não cessou. Depois da expulsão do soldado, o subtenente que conduziu a investigação interna passou a ser assediado por oficiais, segundo informações de um militar com conhecimento direto do caso, que conversou conosco sob a condição de anonimato. Apesar de ter dois familiares com deficiência física como seus dependentes, o que legalmente permitiria que permanecesse na sua cidade natal, foi movido para um quartel em outro estado. Suas gratificações salariais, garantidas por lei, foram sendo adiadas sem explicação; as perícias médicas remarcadas ou canceladas no dia da consulta; documentos que seriam enviados a ele foram extraviados, e ele repreendido pela “perda”.

A história ilustra como oficiais abafam torturas ocorridas nos quartéis para se livrar de investigações. Ao Intercept, quatro praças – que formam a base da hierarquia militar em patentes que vão dos soldados aos subtenentes – relataram pelo menos três casos de tortura e assédio moral ocorridos entre 2018 e 2020 no Exército. Eles não foram adiante por causa da omissão ou até fraude processual feita pela “elite” da hierarquia militar, que compreende de tenentes a generais.


Assim como no caso do recruta no Ceará, militares formados em Direito são designados para conduzir sindicâncias e inquéritos com resultados “encomendados” por superiores. Mas se oficiais discordarem das conclusões, o parecer é fraudado ou distorcido; a vítima, quase sempre, dispensada; e os militares que lideraram a investigação e confirmaram os abusos passam a ser assediados ou preteridos em promoções. “Se o comando discordar [do parecer], usam o artifício da assessoria jurídica para mudá-lo para não prejudicá-los”, relata um militar da ativa e bacharel em Direito, que também preferiu manter o anonimato. Militares podem ser presos se revelarem informações que “resultem em dano a outrem”, segundo o Código Penal Militar – outra forma de dizer que desagradem a corporação.


As assessorias jurídicas dos quartéis têm como objetivo “assessorar o Comando nos seus diversos níveis” e acompanhar demandas jurídicas “de interesse da Força”. Entre suas funções específicas, estão o apoio à instauração, condução e encaminhamento de inquéritos e punições militares, a análise de sindicâncias e o acompanhamento de processos judiciais e extrajudiciais. Nas raras situações em que os casos conseguem extrapolar os muros dos quartéis e chegar ao Ministério Público Federal, essa mesma assessoria atua para encobrir erros, com documentos maquiados ou trocados, detalha um dos militares entrevistados.


“Essas assessorias dão respaldo para perseguições formais”, diz o advogado e militar da reserva Cláudio Lino, presidente do Instituto Brasileiro de Análise de Legislações Militares, o Ibalm. “Se um militar entra na justiça comum, essa informação vai para o cadastro dele, e isso é usado como motivo para ele não ser promovido”, exemplifica Lino, que entrou no início de fevereiro com uma ação na justiça federal contra a quebra de isonomia e supostas fraudes no concurso público de 2021 para o quadro auxiliar de oficiais das Forças Armadas. Segundo Lino, as comissões estariam desclassificando militares com boas notas para promover pessoas com pontuações menores, mas preferidas pelo comando. O Ministério da Defesa não respondeu ao nosso questionamento sobre a ação movida por Lino

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