NO INÍCIO DE 2018, um soldado do Exército foi atendido na unidade médica do quartel do Comando da 10ª Região Militar, em Fortaleza, com sinais de trauma psicológico e hematomas. Após seguidos episódios de delírio e crises de pânico, o recruta acabou dispensado. Uma sindicância foi aberta meses depois para investigar o caso ocorrido na capital do Ceará. Se pré-existisse algum transtorno psicológico, o soldado, que cumpria o alistamento obrigatório, poderia ter a baixa registrada como inaptidão ao serviço militar, o que livraria o quartel de se responsabilizar por potenciais sequelas e indenizações.
Conforme o relatório do caso a que o Intercept teve acesso, dois cabos e um soldado o xingaram de filho da puta enquanto o molhavam com água gelada durante um acampamento militar. O recruta relatou ter sido obrigado por outro militar a rolar em uma poça de lama usada como depósito de urina pelo batalhão. Havia também uma ordem expressa de lhe negar comida. Ao catar uma manga para matar a fome, teve a fruta retirada e foi obrigado a fingir que chupava uma pedra em seu lugar.
Fraco e humilhado, ele disse que não suportou e perdeu a consciência após uma tarefa na qual foi obrigado a rastejar mesmo tendo relatado estar se sentindo mal. Passou um mês internado com episódios de delírio e tentativa de suicídio. Ao sair do hospital, foi convocado a se apresentar de novo no quartel. Lá, teve um surto e foi contido a socos no rosto por cabos e soldados a mando dos comandantes do quartel. Caiu com olhos e boca inchados por hematomas. As ordens de tortura tinham anuência do comandante da 10º Região Militar à época, o major Fulgêncio Leitão de Castro e Silva Júnior.
O militar responsável pela sindicância atestou a tortura contra o soldado, motivada por homofobia. Havia uma ordem interna que orientava recrudescer os maus-tratos para que “esse viadinho pedisse logo para ir embora”. O comando teria dito que não queria homossexuais no seu quartel.
Mas o tenente e o major que chefiavam a assessoria jurídica do quartel não gostaram da conclusão do relatório. Queriam que o assunto fosse enterrado, e o recruta dispensado por doença pré-existente, como se o sofrimento psicológico do jovem, causado pela tortura, não tivesse tido origem no Exército. Deu certo: o recruta torturado foi exonerado sem direito a indenizações ou tratamento.
Mas o assédio não cessou. Depois da expulsão do soldado, o subtenente que conduziu a investigação interna passou a ser assediado por oficiais, segundo informações de um militar com conhecimento direto do caso, que conversou conosco sob a condição de anonimato. Apesar de ter dois familiares com deficiência física como seus dependentes, o que legalmente permitiria que permanecesse na sua cidade natal, foi movido para um quartel em outro estado. Suas gratificações salariais, garantidas por lei, foram sendo adiadas sem explicação; as perícias médicas remarcadas ou canceladas no dia da consulta; documentos que seriam enviados a ele foram extraviados, e ele repreendido pela “perda”.
A história ilustra como oficiais abafam torturas ocorridas nos quartéis para se livrar de investigações. Ao Intercept, quatro praças – que formam a base da hierarquia militar em patentes que vão dos soldados aos subtenentes – relataram pelo menos três casos de tortura e assédio moral ocorridos entre 2018 e 2020 no Exército. Eles não foram adiante por causa da omissão ou até fraude processual feita pela “elite” da hierarquia militar, que compreende de tenentes a generais.
Assim como no caso do recruta no Ceará, militares formados em Direito são designados para conduzir sindicâncias e inquéritos com resultados “encomendados” por superiores. Mas se oficiais discordarem das conclusões, o parecer é fraudado ou distorcido; a vítima, quase sempre, dispensada; e os militares que lideraram a investigação e confirmaram os abusos passam a ser assediados ou preteridos em promoções. “Se o comando discordar [do parecer], usam o artifício da assessoria jurídica para mudá-lo para não prejudicá-los”, relata um militar da ativa e bacharel em Direito, que também preferiu manter o anonimato. Militares podem ser presos se revelarem informações que “resultem em dano a outrem”, segundo o Código Penal Militar – outra forma de dizer que desagradem a corporação.
As assessorias jurídicas dos quartéis têm como objetivo “assessorar o Comando nos seus diversos níveis” e acompanhar demandas jurídicas “de interesse da Força”. Entre suas funções específicas, estão o apoio à instauração, condução e encaminhamento de inquéritos e punições militares, a análise de sindicâncias e o acompanhamento de processos judiciais e extrajudiciais. Nas raras situações em que os casos conseguem extrapolar os muros dos quartéis e chegar ao Ministério Público Federal, essa mesma assessoria atua para encobrir erros, com documentos maquiados ou trocados, detalha um dos militares entrevistados.
“Essas assessorias dão respaldo para perseguições formais”, diz o advogado e militar da reserva Cláudio Lino, presidente do Instituto Brasileiro de Análise de Legislações Militares, o Ibalm. “Se um militar entra na justiça comum, essa informação vai para o cadastro dele, e isso é usado como motivo para ele não ser promovido”, exemplifica Lino, que entrou no início de fevereiro com uma ação na justiça federal contra a quebra de isonomia e supostas fraudes no concurso público de 2021 para o quadro auxiliar de oficiais das Forças Armadas. Segundo Lino, as comissões estariam desclassificando militares com boas notas para promover pessoas com pontuações menores, mas preferidas pelo comando. O Ministério da Defesa não respondeu ao nosso questionamento sobre a ação movida por Lino
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