Leonardo Sakamoto é jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo.
No Espírito Santo, familiares de policiais militares armaram acampamentos em frente a batalhões, paralisando atividades da corporação e levando a segurança pública do Estado ao caos.
Protestam por melhores salários e condições de trabalho. Pois, sim, pagamos salários ridículos, de fome, aos policiais e exigimos que se sacrifiquem em uma guerra em nome de nosso patrimônio. Enquanto isso, uma parcela considerável da população – tanto a parte que quer uma sociedade autoritária como a que não quer – está pouco se lixando para eles, elas e suas famílias.
Se tivéssemos um Congresso Nacional preocupado com a qualidade de vida do país, o momento deveria ser usado para discutir o futuro e a natureza das forças policiais para além de endurecer as leis para jogar mais gente na cadeia. Pois a situação-limite no Espírito Santo se repete em todo o território nacional, com maior ou menor intensidade.
Isso passa necessariamente pela discussão da reestruturação da polícia e sua desmilitarização, além de equipá-la, treiná-la e remunerá-la para fazer frente aos desafios de um país que tem na injustiça e na violência sociais suas pedras fundamentais.
O pensamento binário é fascinante. Para algumas pessoas, a vida é simples: é céu ou inferno. Não existe outra coisa entre um polo e outro, nenhuma área cinzenta, nenhuma dúvida, nada. Para elas, o mundo não é complexo. As pessoas idiotas é que tentam turvar aquilo que é certo, confundindo a certeza que deus nos deu. Daí, para a vida fazer sentido, dizem que todos têm que abraçar uma ideia e simplificar o mundo ao máximo.
Por exemplo, para alguns desse tipo, se você critica a atuação da polícia em uma operação realizada em uma comunidade pobre, afirma que há suspeitas de envolvimento de policiais em uma chacina na periferia ou diz que eles tratam com truculência parte das manifestações de rua, é um defensor de bandidos, quer a morte de policiais e deseja beber o sangue de crianças sacrificadas em nome de algum demônio. O mais feio deles.
Para outros desse tipo (ele está presente em vários grupos ideológicos), se você afirma que o policial não é um monstro alterado por radiação para ser insensível ao ser humano, que não é da natureza das pessoas que decidem vestir farda (por opção ou falta dela) tornarem-se violentas, que elas aprendem a agir assim, no cotidiano da instituição a que pertencem (e sua natureza mal resolvida), na formação profissional que tiveram, na exploração diária como trabalhadores e na internalização de sua principal missão (manter o status quo), você é um fascistinha que está relativizando as mortes causadas por PMs e não entende que a sociedade pode viver sem polícia.
Claro que alguns setores da corporação estão impregnados com a ideia de que nada acontecerá com eles caso não cumpram as regras. Agem à margem da lei em nome do cumprimento da mesma lei – ao torturar para obter respostas, por exemplo. Ou passar por cima dela em proveito próprio – o que pode ser provado pela ação de milícias e grupos de extermínio integrados, muitas vezes, pela banda podre da polícia. Outra parte, reunindo – na minha opinião – a maior parte dos policiais, segue as regras, mas espera que a sociedade e seus chefes (os políticos) os ajudem a continuar seguindo-as.
O problema não se resolve apenas com aulas de direitos humanos e sim com uma revisão sobre o papel, os métodos e o caráter militar da polícia em nossa sociedade. Mudanças que incluem um processo de desmilitarização da polícia. Pois as Forças Armadas são formadas para a guerra. Em última instância, militares são treinados para matar. A polícia, por outro lado, não está em guerra com seu próprio povo. Ao menos, não deveria.
Desmilitarizar a polícia não significa acabar com funções ou hierarquia, mas garantir que o objetivo do treinamento seja proteger a vida e a dignidade das pessoas, independente de quem forem, de sua classe social ou do que tenham feito, ao invés de matar. E significa uma revisão na dureza dessa hierarquia que, ao copiar o modelo militar, faz fluir ordens que levam policiais ao seu limite psicológico e físico. Sua qualidade de vida vai a zero.
E, treinados para a guerra, é para a guerra que vão, contra tudo e contra todos, quando o estresse sobre sua vida chegar ao limite.
Sei que a justificativa do “estou cumprindo ordens” não cola desde o julgamento de nazistas no tribunal de Nuremberg, somos responsáveis pelos atos que cometemos. Mas, neste caso, a discussão do “estou sobrevivendo” e do “ué, mas sempre me disseram que essa era a forma correta de agir” se entrelaçam de forma complexa.
Pois, para muito policial que discorda dessa situação, reclama ou tenta organizar os colegas, a saída pode ser sofrer sanções disciplinares ou ter que pedir demissão. Os policiais que foram executores dos 111 presos no massacre do Carandiru, em 1992, chegaram a ser condenados pela Justiça – que, agora, discute se confirma ou não a decisão. Mas nenhum político, responsável por essas forças policiais, foi ao banco dos réus.
É incrível, mas, para muita gente, é preferível um policial fazer parte de uma milícia do que fazer greve para lutar por direitos.
O problema é parte da população apoia esse tipo de comportamento policial. Gosta de se enganar e acha que se sente mais segura com o Estado agindo ”em guerra” contra a violência – como se isso não fosse, em si, um contrassenso. Essas pessoas são seguidoras da doutrina: ”se você apanhou da polícia é porque alguma culpa tem”. E se não se importam com inocentes, imagine então com quem, posteriormente, é considerado culpado. Para eles, a proibição da pena de morte por aqui é o maior erro da nação. Esquecem que ela existe, só não está prevista em lei.
Mais do que um país sem memória e sem Justiça, temos diante de nós um Brasil conivente com o terror como principal ferramenta de ação policial. Os métodos eram os mesmos incorporados pela polícia na ditadura? Ah, se for em nome da minha (pretensa e frágil) segurança, não importa. Tiro até selfie.
E como também disse aqui, a polícia é um instrumento. O instrumento de uma parcela da sociedade com um grupo de poder econômico para a qual os domínios fora de seu castelo são terra de ninguém. O que acontece lá, fica por lá, desde que as coisas continuem como sempre foram.
Afinal de contas, na maior parte das vezes, os que morrem são negros e pobres, moradores e policiais.
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