quarta-feira, 26 de maio de 2021

MINISTÉRIO DA SAÚDE CEDE À INDÚSTRIA DE ALIMENTOS E ATRASA COMBATE A DOENÇAS CRÔNICAS Secretário da pasta abre exceção para incluir argumentos de gigantes da alimentação em documento que visa prevenir doenças como hipertensão e diabetes.

CONTRA AS BOAS PRÁTICAS que a condução da coisa pública prevê, o secretário de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde, Arnaldo Medeiros, atendeu a um pedido da Associação Brasileira da Indústria de Alimentos, a Abia, e atrasou a divulgação do próximo plano estratégico para combate às doenças crônicas não transmissíveis, elaborado após consulta pública.

A decisão do chefe da Secretaria de Vigilância em Saúde, a SVS, provocou um mal-estar entre funcionários da área técnica, que o acusam de má gestão. Também escreve mais uma página nos registros de interferência das empresas de alimentação em políticas sanitárias.

Depois de sucessivas tentativas barradas pelos técnicos da pasta, a Abia — que representa empresas como BRF, Bunge, Danone, McDonald’s e Nestlé — obteve uma audiência com Medeiros em 4 de março deste ano para tratar da edição de 2021-2030 do “Plano de ações estratégicas para o enfrentamento das doenças crônicas e agravos não transmissíveis no Brasil”.

Na reunião, a associação de empresas afirmou que queria, mas não conseguiu participar da consulta pública sobre o documento. Além disso, criticou a forma como ela foi elaborada. As informações constam na ata do encontro, obtida pela reportagem de O Joio e O Trigo por meio da Lei de Acesso à Informação, a LAI.


Márcio Maciel, diretor de Assuntos Institucionais e Inteligência Competitiva da Abia, justificou a ausência nas discussões do plano dizendo que “não conseguiram encaminhar sugestões por não se sentirem seguros com o curto prazo estipulado”.

A consulta pública foi aberta inicialmente pelo período compreendido entre 30 de setembro e 29 de outubro do ano passado. Para permitir maior participação de interessados, o tempo de recebimento de contribuições foi estendido até 30 de novembro, perfazendo 62 dias ao todo — que é considerado um longo prazo para práticas do tipo, segundo fontes que conhecem o processo e que falaram em condição de anonimato.

O Ministério da Saúde informou a esta reportagem, em nota enviada pela assessoria de imprensa, que a consulta pública “contou com ampla participação da sociedade”. Contabilizou contribuições vindas de 17 estados e do Distrito Federal, feitas por cidadãos, entidades públicas e privadas, como universidades, fundações, sociedades científicas e, também, empresas e associações. Ainda assim, a Abia nem procurou ou quis participar.

Apesar disso, Medeiros atendeu ao chororô da indústria de alimentos, afirmando que “o plano não será publicado sem a contribuição” da Abia, conforme a ata da audiência de março.

Ao tomar a decisão, o secretário ainda declarou que a associação de empresas é “representante ativo e relevante para a construção de políticas públicas, acenando com uma questionável, no mínimo, proximidade entre os interesses público e privado. Em consonância com o secretário, Maciel, o diretor da Abia, disse que a entidade tem uma “parceria de longa data” com o Ministério da Saúde.

Na reunião, ficou acordado que as contribuições da Abia deveriam ser enviadas por escrito, em um ofício — que ainda não aconteceu.

Até esta quarta-feira, 19 de maio, o plano de combate a doenças crônicas não foi publicado, mesmo que a versão anterior já esteja ultrapassada. Por enquanto, há apenas uma versão parcial do documento, não consolidada, acessível no site do Ministério da Saúde.

A demora da Abia para se manifestar levanta entre técnicos da pasta, ouvidos sob condição de anonimato — por temerem represálias —, a suspeita de que a indústria alimentícia não quer deixar os seus objetivos claros neste caso.

Um dos propósitos seria desincentivar o uso do termo alimentos ultraprocessados nos rótulos e embalagens. Outro, o de evitar expor a relação do maior consumo de produtos das empresas associadas com o aumento dos índices de obesidade no país nas últimas décadas. Caso a entidade remeta um ofício por escrito, teria, então, que assumir publicamente uma postura anticientífica e antissaúde.

Procurada por meio de sua assessoria de imprensa para comentar o desfecho da reunião com a SVS, a Abia não retornou aos contatos desta reportagem.

Abia contra o uso do conceito ultraprocessados
O conceito de alimentos ultraprocessados é uma pedra no sapato das corporações alimentícias. Oriundo da teoria da Classificação Nova de Alimentos, datada de 2009, o termo abrange grande parte do portfólio de produtos das empresas afiliadas à Abia. O consumo de ultraprocessados está relacionado ao desenvolvimento de diversas doenças crônicas não transmissíveis e, também, ao ganho de peso corporal.

Confrontada com o crescente de evidências científicas que ligam os ultraprocessados a problemas de saúde, a postura da Abia é tergiversar. Faz isso ao dizer que o combate às doenças crônicas precisa de uma abordagem mais ampla, e, não raro, usa argumentos que sugerem que esses problemas de saúde são resultado de condutas individuais, como a falta de atividade física na população.

Essa, aliás, não é a primeira vez que a Abia investe contra o uso do conceito alimentos ultraprocessados. Desde a publicação do Guia Alimentar para a População Brasileira, em 2014, a indústria nacional se queixa da utilização desse termo científico. Como mostramos, o então presidente da Abia, Edmundo Klotz, já naquela época, tentou engavetar a publicação do Guia Alimentar, pressionando o ministro Arthur Chioro — que, por sua vez, não cedeu.

Em setembro do ano passado, a associação tentou outra vez, mas o tiro saiu pela culatra. Articulou com o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, o Mapa, um pedido de reedição do Guia Alimentar para a População Brasileira.

O objetivo era conseguir a revisão do uso do termo alimentos ultraprocessados. O conceito chegou a ser chamado de “algo cômico” em um ofício do Mapa ao Ministério da Saúde, a despeito de seu uso cada vez mais consolidado no meio científico. Sob intensas críticas de cientistas, profissionais de saúde e organizações da sociedade civil, a iniciativa não vingou.

A investida da indústria de alimentos sobre o Ministério da Saúde, portanto, não é bem uma novidade. O que muda, nesse caso, é o fato de funcionários do alto escalão da pasta estarem dispostos a atender de pronto aos pedidos das corporações. O presidente-executivo da Abia, João Dornellas, já disse, em um evento da indústria realizado em junho de 2019, que a eleição de Jair Bolsonaro era uma chance de aproximação entre o governo federal e as empresas.

Em alguns estados, essa aproximação desejada por Dornellas já é uma realidade. Em São Paulo, como mostramos recentemente em O Joio e O Trigo, o representante da Abia foi indicado pelo governador João Doria, do PSDB, para ser o presidente do Conselho Estadual de Segurança Alimentar e Nutricional de São Paulo, o Consea-SP.

Ele foi eleito para o cargo após uma articulação do setor empresarial com o Executivo paulista garantir o seu nome como o mais votado de uma lista tríplice chancelada por Doria. Controversa, no mínimo, a escolha provocou intensas críticas de organizações da sociedade civil. Apesar de o resultado não ter sido divulgado oficialmente, Dornellas já presidiu o primeiro encontro do Consea-SP em 15 de abril.


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