sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

ENTREVISTA: ‘PULVERIZAR AS DOSES DA VACINA PELO PAÍS NÃO VAI TER IMPACTO NENHUM’ Ex-coordenadora do Programa Nacional de Imunização, Carla Domingues defende regionalização de vacinas e avisa: ainda dá tempo de mudar de estratégia.

 DA MANEIRA COMO foi planejada, a  campanha de vacinação no Brasil não vai ter impacto nenhum sobre o número de internações e de óbitos por covid-19. Pelo contrário: terá como consequência o descontrole ainda maior da pandemia no país. É isso que afirma a epidemiologista Carla Dominguez, que foi responsável pela coordenação do Programa Nacional de Imunização entre 2011 e 2019.

Para ela, espalhar pequenas quantidades de doses de vacina pelo Brasil inteiro, enquanto circula em Manaus uma nova e mais perigosa variante do coronavírus — e a cidade sofre com uma taxa de infecção superior à média nacional —, é um erro estratégico.

Doutora em Medicina Tropical pela Universidade de Brasília e mestre em Saúde Pública pela Universidade de São Paulo, ela defende que a prioridade, enquanto as doses forem insuficientes, deveria ser a população do Amazonas. Em Manaus, diz a especialista, é necessário fazer uma “vacinação ostensiva”.

Além de diminuir o número de internações e mortes no estado, a medida poderia prevenir que a nova variante do coronavírus se disseminasse para outras regiões do país – o que já está acontecendo. O Amazonas já se aproxima dos 300 mil casos de covid-19 e ultrapassou as 10 mil mortes. A taxa de mortalidade no estado é a maior do Brasil e chegou a 245,6 por 100 mil habitantes, mais que o dobro da taxa nacional, que é de 115,2. Muitos pacientes morreram por falta de oxigênio, e a terceira onda da doença no estado já é factível.

De acordo com um levantamento feito por veículos da imprensa que formaram um consórcio para acompanhar os números relacionados à pandemia, apenas 3,4% do público-alvo, que são os brasileiros acima de 18 anos, foi vacinado até o dia 16 de fevereiro. A média é de quase 200 mil pessoas imunizadas por dia. Na segunda semana deste mês, porém, vários municípios, entre eles o Rio de Janeiro e Salvador, suspenderam a imunização dos idosos por falta de doses, o que pode diminuir a média.


Para mudar esse cenário, diz Domingues, o único caminho é comprar mais vacinas, inclusive de outros fornecedores. Até então, o Brasil tinha apenas doses da Coronavac e do imunizante da AstraZeneca. Mas, no dia 16 de fevereiro, o Ministério da Saúde anunciou um cronograma para aquisição de doses por meio do consórcio Covax Facility, coordenado pela Organização Mundial da Saúde, a OMS. Está prevista a compra da vacina Sputnik V, da Rússia, e a Covaxin, da Índia.


A especialista não defende, porém, que os governadores negociem por conta própria a compra de vacinas, como pretendem fazer alguns estados com a Sputnik V. “Na minha avaliação, os governadores deveriam estar pressionando o governo federal a adquirir mais doses”.


Em entrevista ao Intercept, Domingues também falou sobre o movimento antivacina e suas consequências.


Intercept – O planejamento para a vacinação contra a covid-19 no Brasil está correto? 


Carla Domingues – Estamos falando de um momento de escassez de vacinas, então teria que ter outro critério de vacinação. Pulverizar as doses e repassar 100 ou 200 para alguns municípios não vai ter impacto nenhum. Ao mesmo tempo, o Ministério da Saúde mandou só 5% a mais de doses para o Amazonas. E o governo do estado também errou, porque não as concentrou nos municípios mais afetados. Está havendo um erro estratégico na distribuição das vacinas, e a consequência é que vai demorar muito para haver um impacto na diminuição das internações e dos óbitos.


Qual seria a melhor estratégia?


Fazer a regionalização das vacinas teria melhor impacto, porque seria possível imunizar mais gente em um curto espaço de tempo. Não faz o menor sentido pulverizar 2 milhões de doses da vacina da AstraZeneca [produzida no Brasil pela Fiocruz] por todo o país. A sua distribuição seria mais eficiente se fosse concentrada no Norte, principalmente em regiões longínquas, devido à logística de transporte. A segunda dose dessa vacina tem prazo de 12 semanas para ser aplicada. Portanto, daria para usar as 2 milhões de doses de forma imediata, enquanto se aguarda outras chegarem para a segunda aplicação. Dessa forma, mais gente seria vacinada.


Já a Coronavac [produzida no Brasil pelo Instituto Butantan] teria que se concentrar nas regiões de fácil acesso, em municípios com elevada ocorrência de internações. A segunda dose tem que ser aplicada em até quatro semanas. Nesse caso, é preciso guardar [metade das doses recebidas] para a segunda aplicação.


Localidades como Manaus, com elevada taxa de infecção e uma nova cepa, precisariam de vacinação ostensiva. Seria mais eficaz e poderia prevenir que essa nova variante se disseminasse para outras regiões do país.


Em alguma das campanhas que já coordenou, foi usada essa estratégia de regionalização de vacinas? 


Campanhas de gripe Influenza já foram iniciadas regionalmente por conta da antecipação da ocorrência de casos e óbitos. Então, a campanha começou antes nestes locais, a exemplo de São Paulo, Amazonas, Goiás ou na região sul.

Ainda dá tempo de mudar a estratégia da vacinação contra a covid-19?


Sim, porque vamos continuar recebendo vacinas em quantidade insuficiente nos próximos meses para atender o público-alvo de brasileiros definido pelo Ministério da Saúde. O Plano Nacional de Imunização, o PNI, não é estático. Ele precisa de uma avaliação constante de quem está coordenando a campanha. Até que se tenha maior quantidade de vacinas, deveria haver uma avaliação regional. Hoje, está claro que a prioridade é a região Norte.


Uma ação judicial movida recentemente pelas Defensorias Públicas do Amazonas e da União requereu que o governo federal compre doses suficientes para vacinar 70% da população de oito municípios do estado com taxa de mortalidade acima de 150 por 100 mil habitantes. A taxa nacional, em 18 de fevereiro, era de 115,2. Em resposta, a União alegou que não se deve “obrigar o ente federal a adquirir o que infelizmente ainda não existe” nem se deve oferecer “atendimento diferenciado diante uma situação onde a pandemia ataca toda a nação”. Qual sua avaliação sobre isso?


Não existe, porque o governo federal não está buscando novos fornecedores. A Pfizer ofereceu 2 milhões de doses para o Brasil. Se [o Ministério da Saúde] já tivesse adquirido essas vacinas, elas poderiam ter ficado nos grandes centros e haveria mais disponibilidade de envio das vacinas Coronavac ou AstraZeneca para os estados do Norte. Seria uma estratégia para evitar a disseminação, tanto no Brasil como no mundo, desta nova variante. Tudo indica que ela afeta maior número de pessoas, pressionando os serviços de saúde em total esgotamento da capacidade de atendimento à população.


É dever do Ministério da Saúde e do PNI organizar a logística de aplicação da segunda dose ou isso deve ficar a cargo de cada município?


É preciso ter uma comunicação clara e eficiente para convocar a população a retornar aos postos de vacinação e completar o seu esquema vacinal. O Ministério da Saúde poderia ter orientado a aplicação da segunda dose de forma nacional. Seria fundamental recomendar o prazo máximo de intervalo entre as duas doses – quatro semanas para a Coronavac e 12 para a AstraZeneca. Assim, haveria uma uniformização em todo o país. Mas cada município está adotando um intervalo diferente, o que dificulta a vacinação e confunde a população, pois ela vê em seu município uma recomendação e, no município vizinho, outra.


Como fazer para evitar desperdício da vacina da AstraZeneca, cujo frasco possui 10 doses e precisa ser usado em até seis horas após a abertura? 


Não sei se está sendo feito o controle de doses aplicadas por um sistema informatizado, que possa medir essas perdas. Estamos falando de 37 mil postos de vacinação, sem contar com os postos volantes que estão sendo criados. A informatização desses dados é fundamental para que seja feito o monitoramento da taxa de uso das vacinas, para evitar desperdício ou a possibilidade de vacinar pessoas fora da ordem de prioridade da vacinação.

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