As taxas de sindicalização no Brasil não resistiram à “tempestade perfeita” que inundou o mercado de trabalho nesta década. Desde 2012, os sindicatos brasileiros perderam 2,88 milhões de sócios. Em sete anos, o índice de sindicalização entre trabalhadores formais (com carteira assinada) passou de 16,1% (2012) para 12,5% (2018). Os dados são da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua, divulgada na quarta-feira (18) pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
“Para quem acompanha o movimento sindical, nada disso é surpresa”, garante o consultor João Guilherme Vargas Netto, colunista do Vermelho. Segundo ele, ainda que 1,5 milhão de trabalhadores tenham se desassociado de suas entidades apenas de 2017 a 2018 – um número recorde –, o cenário já se agravou. “Esse resultado está aquém da realidade”, diz ele. “A grande queda na sindicalização ocorreu mesmo em 2019, e a PNAD só foi até 2018. A taxa real de trabalhadores associados a sindicatos, hoje, deve estar em 10% – ou até menos.”
Lideranças sindicais e especialistas ouvidos pelo Vermelho são unânimes em apontar a conjuntura nacional como força motriz desse fenômeno. Mas também cobram autocrítica do movimento sindical, tradicionalmente restrito aos trabalhadores formais e cada vez mais negligente com tarefas como campanhas de sindicalização. Nem todos os entrevistados pela reportagem são pessimistas, e há várias propostas para atrair os trabalhadores de volta aos sindicatos.
As causas econômicas
Desde a redemocratização, o movimento sindical viveu o que João Guilherme chama de “milagre brasileiro”. Os índices de sindicalização permaneceram, por quase três décadas, na faixa de 18%, mesmo com os mais diversos contratempos – da estagflação dos anos 80 ao elevado desemprego sob os governos FHC, passando pela recessão na era Collor. Porém, nos últimos cinco anos, a combinação de crise econômica com ataques permanentes ao movimento sindical derrubou esse piso histórico.
Por pouco mais de uma década, até o final do primeiro governo Dilma Rousseff (2011-2014), o número de empregados formais bateu sucessivos recordes. Assim, a própria base à disposição dos sindicatos se ampliou consideravelmente, já que havia cada vez mais trabalhadores com carteira assinada na mira das entidades.
Tudo isso ruiu com a longa recessão econômica de 2014-2016, os efeitos perversos da operação Lava Jato (sobretudo na indústria nacional) e a escalada golpista que culminou nos governos ultraliberais de Michel Temer e Jair Bolsonaro. A tendência de geração de empregos e formalização do mercado de trabalho, construída a duras penas, se inverteu.
“Quando o País registrava seus menores índices de desemprego, tínhamos também as maiores taxas de sindicalização”, afirma Marcelino da Rocha, presidente da Fitmetal (Federação Interestadual de Metalúrgicos e Metalúrgicas do Brasil). “A redução no número de trabalhadores sindicalizados é simbólica de dois anos e meio de governo Temer e um ano de governo Bolsonaro. Foram gestões que dizimaram os empregos formais, jogaram quase 25 milhões de brasileiros na informalidade e se recusaram a ter um projeto de desenvolvimento nacional capaz de gerar emprego e renda”, agrega.
Se na campanha presidencial de 2014 Dilma ainda vendia o trunfo do “pleno emprego”, em abril de 2017 o País registrava o maior número de desempregados de sua história: 14,2 milhões de trabalhadores. Passada a recessão, veio a semiestagnação. A taxa de desemprego até começou a cair, mas em ritmo lento e à base de postos de trabalho informais. No trimestre encerrado em setembro deste ano, 38,8 milhões de brasileiros estavam na informalidade – o equivalente a 41,4% do mercado de trabalho do País. É o maior patamar já captado pela PNAD.
“A diminuição no número de trabalhadores sindicalizados tem três causas importantes: o desemprego, a informalidade e a precarização do trabalho”, sintetiza Nivaldo Santana, secretário nacional de Movimento Sindical do PCdoB e secretário de Relações Internacionais da CTB (Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil). Sem contar a redução da massa salarial, “que faz com que trabalhadores procurem cortar despesas, como a sindicalização”.
Outros fatores
A reforma trabalhista – que entrou em vigor no final de 2017 e promoveu um desmonte da CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) – impôs um novo revés ao sindicalismo. Além de cortar prerrogativas e esvaziar a representação das entidades, a medida tornou facultativo o imposto sindical e burocratizou a cobrança de qualquer tipo de contribuição ao movimento. Nem mesmo a ditadura militar (1954-1985) havia atacado a sustentação administrativo-financeira das entidades.
Com Jair Bolsonaro na Presidência, a guerra ganhou novos capítulos, na forma de PECs (propostas de emenda à Constituição) e MPs (medidas provisórias) que tentam enfraquecer os sindicatos. “Estamos numa conjuntura muito difícil no Brasil”, diz Augusto Petta, coordenador-técnico do CES (Centro de Estudos Sindicais). “Interessa ao governo acabar com as entidades sindicais, que, mesmo com todas as dificuldades, representam obstáculo à perda dos direitos trabalhistas e previdenciários, aos ataques à soberania e à democracia.”
As negociações entre capital e trabalho também se tornam mais duras, diminuindo a margem para reajustes reais e conquista de direitos. Ao contrário: em tempos de defensiva e resistência, uma das prioridades do movimento sindical passa a ser a não aplicação da reforma trabalhista e de outros retrocessos nas convenções e nos acordos coletivos. “Esse ambiente de crise, desemprego e dificuldades pode criar certo desalento em alguns setores, afastando trabalhadores do sindicato”, opina Nivaldo Santana.
Miguel Torres, presidente do Sindicado dos Metalúrgicos de São Paulo e Mogi das Cruzes e da Força Sindical, concorda que o afastamento do trabalhador passa por várias razões. “Não foi somente a reforma trabalhista que influenciou na decisão do trabalhador. A crise econômica e o desemprego também contaram muito”, afirma. “Mesmo se o trabalhador volta ao mercado, é com salários mais baixos e com medo de ficar desempregado.”
O exemplo dos metalúrgicos de São Paulo (SP), maior base territorial do setor, com cerca de 120 mil trabalhadores, é emblemático. Até meados desta década, 23% da categoria estava associada ao Sindicato – um índice acima da média nacional. Hoje, a taxa de sindicalização é de 17%. “Estamos sofremos também o impacto da rotatividade”, afirma Miguel. Mas não é só: “O movimento sindical esqueceu que tinha de buscar mais associados e ganhá-los. Ficamos distantes da base. As campanhas contra o sindicato ficaram mais fortes, e nós perdemos a guerra da comunicação.”
Milton Pomar, profissional de marketing e assessor sindical, analisa a postura das próprias lideranças do movimento. Nos últimos quatro anos, ele ministrou cursos para mais de 3 mil sindicalistas e assessores, em todo o País. Na maioria dos casos, não constatou disposição para “fazer acontecer” as campanhas de sindicalização.
“Os dirigentes não vão aos locais de trabalho para filiar. Hoje, há uma cultura dominante de não arregaçar as mangas, de não ir às bases para argumentar”, afirma. “Há sindicatos que se limitam a divulgar um cartazinho, um banner, e chamam isso de ‘campanha’. Querem aumentar a receita, mas, de preferência, sem aumentar a quantidade de sindicalizados. Mais sindicalizados significa mais trabalho e despesas.”
Ele também alerta para a desproporção entre trabalhadores aposentados e ativos, sobretudo entre servidores públicos. “Os aposentados chegam a representar de 60% a 65% em algumas categorias do funcionalismo. Como tocar as lutas do pessoal da ativa se os sindicatos são sustentados por até dois terços de filiados aposentados?”.
Saídas
O que fazer, então, para reverter o problema e reaproximar os trabalhadores? “É preciso paciência, ousadia e perseverança”, diz Clemente Ganz Lúcio, diretor técnico do Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos). “Paciência para resistir ao desemprego, às mudanças nas ocupações e no mundo do trabalho. Ousadia para inventar formas de organização de base no local de trabalho e no local de moradia, criar novas formas de mobilização e reestruturar os sindicatos para a nova dinâmica do mundo do trabalho. Perseverança no trabalho contínuo de base, em criar conexões para desenvolver a solidariedade. A adesão dos trabalhadores ao sindicato será o resultado convergente dessas frentes”.
Na visão de João Carlos Gonçalves, o Juruna, secretário-geral da Força, a sindicalização tende a crescer à medida que houver mais empregos formais. Porém, não dá para ficar à espera dessa reviravolta – improvável a curto prazo. “Os sindicatos e as centrais devem pensar em também atender aos trabalhadores que estão sob outras formas de contratação”. Entre as estratégias mais gerais, ele propõe a realização de “campanhas de sindicalização unitárias”, que envolvam todas as centrais sindicais.
Nivaldo Santana sugere uma campanha ainda mais abrangente, “de valorização e fortalecimento dos sindicatos”. O dirigente do PCdoB enfatiza que o movimento sindical deve dialogar com o trabalhador onde quer que ele esteja. “A atuação sindical não pode se restringir ao local de trabalho. É preciso atingir o trabalhador em outros ambientes que ele frequenta, como os locais de moradia e de estudo.”
Segundo Nivaldo, uma revisão da perspectiva do sindicalismo sobre os trabalhadores requer novas táticas. “O sindicato precisa de políticas realmente incisivas para se envolver com outras áreas de atividade e atrair jovens e mulheres. Precisamos nos aproximar de outros movimentos – como os sociais, culturais e esportivos – para sensibilizar os trabalhadores desconectados do mundo sindical.”
Investir em formação e comunicação é outro imperativo. “O planejamento dos sindicatos deve tratar essas duas áreas como questões essenciais”, diz Nivaldo. “Sem melhorar a formação dos trabalhadores, não vamos desenvolver uma consciência classista, nem a noção do sindicato como ferramenta indispensável de representação.” Na comunicação, sem abrir mão dos meios tradicionais – como jornais e boletins –, vale “explorar todo o potencial das mídias sociais”.
João Guilherme adverte que qualquer estratégia pressupõe “pequenos passos”, já que, segundo ele, “não há soluções mágicas nem balas de prata”. Em sua opinião, uma unidade maior das centrais sindicais em torno de campanhas comuns não é suficiente. “Cada segmento tem de ver onde falhou e compreender a realidade, mesmo que ela seja negativa. É a mais grave crise na história do movimento sindical.”
Para ele, as entidades têm de apostar em “campanhas permanentes de sindicalização, ressindicalização e fidelização”. Mas, antes, convém mudar o modo como os sindicatos dialogam com as bases. “O trabalhador está com muitas dificuldades concretas hoje. Os partidos não vão atendê-lo, nem os patrões, nem os pastores. A quem ele vai recorrer? Por que os sindicatos não divulgam mais os serviços que oferecem aos sindicalizados?”
Outra proposta de João Guilherme é não sobrepor a questão política à pauta cotidiana do trabalhador. “Se a primeira coisa que você diz é ‘fora, Bolsonaro’ ou ‘Lula livre’, a polarização da esfera política vai para a questão sindical”, avalia. “Para se reaproximar de uma base que está com tanta angústia, pense no que ela quer e precisa – no que ela está disposta a lutar.”
11 ações
A pedido do Vermelho, o CES – que assessora entidades em todo o Brasil – também listou medidas para reverter o declínio nas taxas de sindicalização dos trabalhadores. Segundo o coordenador Augusto Petta, são 11 ações que “podem ser úteis” não apenas na relação com os trabalhadores – mas também para o fortalecimento dos sindicatos nas lutas gerais. “É recomendável que, nas atividades amplas, o sindicato procure envolver a categoria como um todo”, diz Augusto.
Confira as 11 propostas do CES para os sindicatos:
- Aproximar mais as diretorias das entidades às suas bases;
- Realizar campanhas de sindicalização;
- Realizar atividades de formação política e sindical;
- Realizar pesquisa para compreender melhor o novo perfil da classe trabalhadora;
- Realizar planejamento estratégico situacional;
- Realizar reuniões constantes de conjuntura com a diretoria e os delegados sindicais;
- Aprimorar o sistema de comunicação;
- Desenvolver a luta econômica por melhores salários e condições de trabalho;
- Desenvolver a luta política, com participação em manifestações públicas e nas eleições, dando apoio a candidatos que efetivamente defendam os interesses da classe trabalhadora;
- Participar ativamente da luta de ideias, procurando sempre esclarecer que o governo atual, o neoliberalismo e o fascismo são inimigos do povo;
- Desenvolver atividades culturais – como teatro, coral, saraus –, de preferência com apresentação dos próprios membros da categoria.